Estudando HISTORIOGRAFIA e analisando NARRADORES DE JAVÉ
Como diria uma amiga que conheci na Graduação: “a escrita nunca nos satisfaz! Entre um escrever e outro, você sentirá a vontade e a necessidade de escrever mais”. Ela estava certa. Quando estudava profundamente Historiografia (em 2018), para posteriormente escrever a obra “Uma década de PROSA“, acabei me deparando com esse filme, e senti a necessidade de o analisar por escrito. O texto foi produzido em 2018, e apresenta todas as marcas desse momento de construção.
Autora do Texto: Hebelyanne Pimentel da Silva.
O filme brasileiro dirigido por Eliane Caffé e lançado no ano de 2003 pela produtora Bananeira Filmes, com relevância social reconhecida, foi premiado em vários festivais nacionais e internacionais. E assim, tornou-se objeto de estudos de muitas áreas.
Gravado no povoado Gameleira da Lapa, interior da Bahia, ele conta a história de Javé, um vilarejo que estava prestes a ser inundado para que em seu lugar fosse construída uma represa. A realidade vivenciada mobilizou os moradores que acreditavam ser possível fazer algo capaz de impedir a efetivação da tragédia anunciada. Reunidos, decidiram escrever um livro com as memórias que possuíam acerca da origem do vilarejo, visando o tombamento deste.
Convidaram, para tanto, um dos poucos cidadãos letrados da redondeza, Antônio Biá. Este foi em busca de relatos de todos os moradores antigos do local. Cada um destes apresentou memórias diferentes acerca de fatos vistos e vivenciados. A pesquisa desenvolvida pelo protagonista, parece fundamentar-se nas ideias da nova história, anunciada pela Escola dos Annales, especificamente na terceira fase desta (BARROS, 2011; BURKE, 2010; DANTAS, 2007), por aproximar o pesquisador de um antropólogo (GINZBURG, 2007). Ao mesmo tempo, a produção escrita, idealizada desde o início da trama, não é vista sob tal perspectiva. Diferente do que colocam Marc Bloch e Lucien Febvre (BURKE, 2010), não se percebe uma história problema. O texto que seria produzido a partir dos relatos, iria dispor uma narrativa grandiosa dos fatos heroicos, sem que, a estes, fosse feita uma análise crítica.
Nas entrelinhas da produção cinematográfica, existe a enunciação contundente do valor da escrita enquanto elemento que eterniza memórias e, consequentemente, sujeitos. Os relatos orais apresentam-se como fontes. Benjamin adverte que é na narrativa que as maiores riquezas podem ser encontradas. É nela que os escritores devem buscar inspiração. Provavelmente pela riqueza existencial que apresenta. Para ele, na sociedade moderna, tornam-se
“[…] cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 2012, p. 198).
As histórias estavam vivas na oralidade e perpetuaram por gerações. Para tornarem-se eternas necessitavam apenas da memória humana, diferente da escrita. As memórias estavam, inclusive, na literatura, como se percebe em um conhecido texto de Camões, os Lusíadas. E a interação da narrativa com a escrita se tornava valorativa em tal circunstância. Não por acaso, apenas fatos heroicos eram eternizados.
Na crença a essas ideias, fundamentaram-se os moradores de Javé. A maneira de perceber o historiador e os personagens de destaque, os fazia acreditar que a única forma de se sentirem participantes da história seria na descoberta de um grau de parentesco com as figuras de destaque. Suas narrativas carregavam verdades e invenções. Eram eles autores de uma fonte influenciada por suas realidades e contextos (CAIMI, 2010, p. 76). Ora eruditos, ora defensores de causas populares, todos mantinham homogeneidade na percepção da maneira de conquista territorial, na existência de uma figura principal e na condição de pobreza enfrentada pelo povo.
O primeiro depoimento coletado, elaborado pelo personagem Vicentino, colocava, sob perspectiva erudita, Indalécio como fundador de Javé e como figura central nos acontecimentos. Para ele:
“Indalécio era um homem seco, duro, sistemático. Era um homem que nunca dizia sim quando queria dizer não. Cada coisa pra ele só tinha uma medida. […] Nunca descia do cavalo. Dormia montado na cela pra tá pronto pra guerra a qualquer momento”.
Percebe-se uma visão conservadora e, ao mesmo tempo, patriarcal, de sociedade e de humano. Neste, pouco é notada a existência de uma pessoa, de fato. O protagonista aparece como protetor do povo, nada mais.
A história de Javé começa junto com Indalécio. Foi ele quem guiou nossos antepassados, um punhado de gente valente que era sobra de uma guerra perdida. Tinham sido expulsos das suas terra por ordem do rei de Portugal, que queria tomar o ouro que era deles. Pois Indalécio, mesmo ferido, foi trazendo seu povo pra longe, em busca de um lugar seguro. Mas Indalécio não atinava com o lugar certo. Ele queria ir mais longe, distante de braço de governo, de rei. Andaram dias, meses… trazendo nas costas o sino, que era a coisa mais sagrada que possuíam. (…) Indalécio mergulhou naquele mar de boi, escolheu o boi mais bonito e mais gordo, matou e levou pra matar a fome de nossa gente. Não disse uma palavra (Vicentino).
Era um herói guiado por uma missão pré-estabelecida. Um sujeito que em posição elevada não se misturava com os demais. Mesmo estando no lugar dos vencidos, como retirante, era apresentado na história, da mesma maneira que os demais colonizadores. O narrador deixa clara a admiração sentida pelas ações de um povo branco e dominante, que reprimia a sua condição marginal de sertanejo e pobre.
O relato posterior apresenta versão totalmente diferente. Nele Mariardina é a fundadora do vilarejo: “Caminhavam a dias. O de comer era pouco. E muitos ficavam mortos pelo caminho. Indalécio, mesmo ferido, guiava o bando, mas nenhum lugar parecia prestar para sentar sua gente” (Deodora). Após a morte do personagem, Deodora relata que:
“Mariardina desapareceu por um dia e uma noite, mas no dia seguinte Mariardina apareceu para levar a sua gente ao lugar em que os pássaros da noite haviam lhe mostrado. E alí, no grande vale, ela cantou as divisas de Javé: ‘Na rua, rumo do cruzeiro do céu, até onde a vista alcança, há de ser terra nossa!'”.
Percebe-se a problematização a concepção de gênero vigente, quando a crítica ao patriarcalismo é feita, mas os dois relatos mediavam-se pela crença de que a única maneira de se sentirem partícipes dos fatos grandiosos seria estando na condição de parentes dos protagonistas. Não se mantinham conscientes de que em si mesmos todos são, vivem e produzem história. Não obstante esteve a fonte oral formulada pelos moradores de um quilombo local. Para estes:
“Por muito tempo nossa gente andou guiada por Indaleô e pelos olhos de Fá, que já enxergaria os caminhos. Até que um dia encontraram o lugar onde morava OXÚN. […] A África agora estava ali com eles”.
Como notável, são maximizados elementos da cultura africana e o protagonista passa a ser um homem negro, que buscava um espaço capaz de possibilitar existência de uma vida de liberdade para si e para os outros. As fontes orais parecem contrapor aquilo que Benjamin coloca enquanto princípio da narrativa, a exatidão (Benjamin, 2012), todos são influenciados por sua condição de vida e por esse motivo, as falas precisam ser confrontadas com outros documentos e fatos, necessitando passar por filtro de quem as analisa, pois, como alerta Caimi (2010, p. 76) “os autores de fontes podem não ter a necessária liberdade no momento de produzi-las ou, ainda, podem estar demasiadamente comprometidos com o contexto em que estão inseridos”, expondo verdades fragmentadas.
As fontes documentais (cartas, mapas, registros, objetos, etc.) aparecem por meio dos personagens gêmeos e do jovem Daniel, mas o escritor, Antônio Biá, não mantem postura investigativa, o que o retira da condição de historiador e o caracteriza como técnico. Talvez seja essa a crítica feita a algumas concepções de história e de pesquisa adotadas tanto nas sociedades antigas quanto na sociedade moderna.
Percebe-se a relevância da produção cinematográfica tanto como expositora da história nordestina, com suas culturas e riquezas, quanto da historiografia e seus impactos sociais e políticos.
Referências
BARROS. J. D. A. A Nova História Cultural – Considerações sobre o seu universo
conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. In.: Cadernos de História,
Belo Horizonte, v. 12, n. 16, 2011.
BENJAMIN, W. O Narrador. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre
literatura e história da cultura (Obras escolhidas I). São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 197-
121.
BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da
historiografia. 2 ed. São Paulo: Editora UNESP 2010.
CAFFÉ, E. Narradores de Javé. Brasil: Bananeira Filmes, 2003. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=Trm-CyihYs8>. Acesso em: 13 de agosto, 2019.
CAIMI, F. E. Meu lugar na história: de onde eu vejo o mundo?. In.: OLIVEIRA, M. M.
D. de (org.). História: ensino fundamental. Brasília: Ministério de Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010.
DANTAS, S. A. B. História e historiografia nos séculos XIX e XXI: do cientificismo
à história cultural, 2007. Disponível em:
<http://www.congressohistoriajatai.org/anais2007/doc%20(51).pdf>. Acesso em: 13 de
agosto, 2019.
GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire
d’ Aguiar e Eduardo Brandão. S. São Paulo: companhia das Letras, 2007.
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Sobre o autor
É Pedagoga, Mestra em Educação e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver, por meio desta coluna, reflexões majoritariamente autobiográficas sobre as condições de vida das pessoas de origem interiorana, especificamente do interior de Alagoas. Escreve, comumente, crônicas e artigos de opinião, mas também utiliza-se da linguagem poética, quando pertinente à temática destacada.