Mundos que acabam na fotografia e no cinema, e a nostalgia que despertam
1. “Nós somos jovens e orgulhosos”, escreve o crítico Jason Farago, do “New York Times”, imaginando o que dizem personagens de uma fotografia de 2001 do alemão Wolfgang Tillmans. Nela há homens gays à porta de um galpão transformado em clube noturno, esperando para viver o que era comum na Berlim do período pós-queda do Muro e pré-11 de Setembro, crise de 2008: “Não há mais controle de fronteiras (…). Nós estamos prontos para dançar e fazer outras coisas no escuro. A festa segue depois do amanhecer, e parece que pode durar para sempre”.
Tillmans acaba de ganhar uma retrospectiva no MoMA, “To Look Without Fear”. É uma homenagem que aponta para o futuro, valorizando ainda mais um artista fundamental da vida urbana europeia das últimas décadas, mas também fala de um mundo que acabou: pessoas que se foram, tecnologias obsoletas, otimismo superado. Como escreve Farago em seu artigo, os 35 anos cobertos pela mostra flagram “a ascensão de um fotógrafo ao topo de seu ofício, e em seguida a desintegração de quase tudo que ele ama”.
O sinal duplo de início e fim não é só temático nas fotos expostas. Como qualquer profissional de seu metiê que começou antes da internet, Tillmans trabalhou com uma ideia de registro imagético que tinha mais importância (ou especificidade) do que tem hoje. Na hiperdocumentação de 2022, uma cena da vida privada é só mais uma entre milhares. Os elementos formais elogiáveis podem estar lá, mas a economia da atenção já não nos permite olhar para eles do mesmo modo – não com o vagar, o cuidado necessário para fixar algo único na memória, que era mais comum nos 1980 ou 1990.
Assim, há certa melancolia em reparar nos detalhes dessa obra a um só tempo sofisticada e direta, que usa o cálculo – o manejo de luz, de composição – para chegar a atmosferas de intimidade. O valor estético desses elementos poderia falar para muita gente, mas agora talvez se dirija para quase ninguém: num autorretrato à beira de uma piscina (1988), há uma sombra em parte do rosto, o vermelho das flores, o contraste entre a aspereza da pedra e a suavidade do azul da água; na pose de dois amigos em cima de uma árvore (1992), há o trançado dos galhos, o material das roupas, a disposição dos corpos e de suas texturas de pele, de cabelo.
Chegar ao registro de algo é excluir o que não está lá – ou diluir, resumir, deformar o que está. No caso de Tillmans e outros artistas de sua geração e tamanho, as imagens como que remetem ao fim de certa relação entre elas mesmas e o público. Isso é bom, é ruim ou apenas é o que é: a história seguindo em frente, como – aí de fato – uma dança que jamais termina.
2. Li o texto de Farago pouco depois de terminar “História(s) do cinema”, magnífico poema longo de Jean-Luc Godard lançado este ano no Brasil pela Círculo de Poemas (192 págs., tradução de Zéfere). Há um parentesco entre a sugestão de obsolescência da mostra de Tillmans e as considerações explícitas do cineasta franco-suíço. A diferença é que o objeto em desintegração aqui não é a fotografia, e sim sua arte irmã, que também ajudou a moldar o imaginário do século XX.
Godard não está preocupado com cronologia, e sim com as características que tornaram o cinema culturalmente importante – as mesmas que, daria para dizer, hoje o põem em outro tempo e lugar. Há várias menções temáticas no poema – clássicos sobre sexo, beleza e guerra, dirigidos por nomes que vão de Méliès a Spielberg -, mas tudo é submetido ao mesmo sentido de origem. Que é também um sentido de forma, aqui resumido no tom característico – um pouco solene, um pouco irônico – do autor: “O cinema não faz parte/ da indústria/ da comunicação/ nem da do espetáculo/ mas da indústria de cosméticos/ da indústria das máscaras/ que por sua vez é apenas/ uma pequena sucursal/ da indústria da mentira”.
“História(s)…” foi escrito nos anos 1990, e é curioso ler trechos assim na era das redes sociais. A indústria das máscaras continua forte como nunca, mas seu setor de ponta – o que dá mais dinheiro aproveitando a tecnologia mais avançada – foi deslocado para o celular. O que restou das velhas salas de projeção, onde multidões pagavam para ver conteúdo não interativo numa tela grande, são sombras de um (outro) mundo extinto: nele havia “uma margem/ de indefinição” capaz de “negar/ o vazio/ e também o olhar/ do vazio sobre nós”, algo utópico no atual regime de estímulos incessantes.
Para Godard, os filmes pagaram o preço pelo tamanho de sua pretensão de nascença: estar à altura “dos pesadelos e dos sonhos”, ser a mágica projetada não no tecido comum das telas, e sim “sobre um sudário”. O que pode haver de mais deslocado num tempo que achatou o horizonte das ideias e da sensibilidade? “Há quase cinquenta anos/ que no breu/ o povo das salas escuras/ incendeia o imaginário/ para aquecer/ o real/ agora o real se vinga/ e reivindica lágrimas de verdade/ e sangue de verdade”.
3. Tanto “História(s)…” quanto “To Look…” dão margem para especularmos sobre o passado, o que é uma especulação sobre nós mesmos. Gosto de uma frase cuja autoria não lembro de quem é (talvez Susan Sontag): a nostalgia estaria para a memória como o kitsch está para a arte. Mas será nostalgia pura o que move Godard e Tillmans (ou a interpretação de Farago sobre Tillmans)?
Mais amplamente, existe nostalgia pura, sem as camadas de mediação – a ironia em esfera ampla – de toda análise anacrônica? Pergunto isso no início de dezembro, enquanto escrevo esta que é minha última coluna de 2022. Submergir na tristeza típica da época, pensando em coisas e pessoas que ficaram para trás, é também celebrar o tempo – a beleza da mudança, a liberdade de não precisarmos mais ser quem éramos.
O passado só existe dentro do presente. É nele que ocorrem os efeitos da nostalgia, que então se torna outra coisa. Pode ser algo estimulante, inclusive, ressuscitando (mesmo que precariamente) o que parecia morto nas paredes de um museu ou nos versos de um livro. De novo Godard: “A única coisa/ que sobrevive a uma época/ é a forma de arte/ que ela criou para si/ nenhuma atividade/ há de se tornar/ arte/ antes que sua época/ tenha acabado/ em seguida/ essa arte desaparecerá”.
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Sobre o autor
José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.