O mito da democracia na sociedade capitalista: cruzamentos entre história de vida e construção de um objeto

Nesse texto, introduzo a minha pesquisa, iniciada em 2018, que vem sendo continuada em nível de Mestrado. Evidencio o cruzamento entre a minha História de Vida e a construção do meu objeto. Mostro que toda a investigação parte de um LUGAR.

Na qualidade de mulher interiorana, naturalizei, por longa data, uma maneira de viver. Acreditei que o destino feminino se encontrasse estabelecido no nascimento: casamento e maternidade. Conhecia apenas uma cultura. A rejeição interna ao patriarcado, foi sendo desenvolvida por meio do contato com pensadores e pensadoras de outrora, eternizados em livros. Por meio da literatura feminista, contatada ainda na Escola Normal, fui me percebendo mulher pobre, ou melhor: pessoa de gênero e classe. Com esse olhar iniciei, precocemente, o exercício docente, primeiramente na Educação Infantil e posteriormente no Ensino Fundamental do sistema público e privado, de municípios situados no interior de Alagoas. Migrei para o Ensino Superior em Pedagogia, com percepção da dinâmica escolar. Inquietava-me a condição de trabalho docente. A graduação me levou ao contato com Jane Almeida (2007, 2011) e Guacira Lopes Louro (2014). Escritoras que me fizeram refletir sobre a construção identitária professoral, colocando o feminino como gênero subalternizado. Compreendi, a duras penas, desde o contato com uma Pedagogia para Oprimidos (FREIRE, 2018), que a única maneira de me fazer ouvida em uma sociedade que oprime, é apropriando-me do que nela tem sido socialmente valorizado. Saviani (2018) também parte desse pressuposto em teorizações e práticas. As perguntas à realidade, multiplicavam-se.

Desejava entender algumas das coisas que melhor eram explicadas por Karl Marx (1996), até um dado momento da investigação que, aos poucos, venho buscando introduzir. A miséria que, em muitos momentos, me impediu de viver, de sonhar, de estudar, gerava o meu modo de perceber a realidade e de posicionar-me diante dela. Uma miséria que me fazia morrer em vida. Miséria presenciada como: menina do interior, jovem estudante, docente da educação básica. A união de todas as experiências, levava-me a perceber, no estudo, o único refúgio possível. Mesmo quando este era roubado pelas circunstâncias.

Ao ingressar na Graduação em Pedagogia, passei a participar de uma pesquisa que discutia o discurso sobre a mulher burguesa no século XX. Em pouco tempo, fui notando que esse não era o meu campo de atuação desejado, provavelmente pelo modo como a investigação acontecia e pelo referencial teórico que norteava o projeto. Ingressei na segunda Iniciação Científica, já no terceiro período de curso, e esta atentava a “Formação de Professores”. Eu buscava compreender os desafios presentes no “processo de adesão à docência por estudantes das licenciaturas da UFAL”, analisando, para tanto, a escrita deixada por essas pessoas, no que chamávamos de “Diários Reflexivos”. O contato com informações levantadas nessa etapa da minha trajetória, fez surgir indagações que não se encaixavam nos interesses dos programas de pós-graduação alagoanos.

Aos poucos fui descobrindo que as leituras unidas ao olhar direcionado a realidade, aproximavam-me de um campo de investigação: História da Educação. Sobretudo do que, até então, denominava: História das Mulheres Professoras. Paralelamente, ao tempo que fazia PIBIC, estava lendo uma obra que contatei quando participava, informalmente, de aulas no Programa de Pós-Graduação em Letras, da UFAL: “O queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição”, de Carlo Ginzburg (2006). Lia o supracitado texto como se este fosse uma produção literária. Não tinha ideia de que a cresça de Menocchio (Idem), na noção de que o caos gera o humano que, no momento, me ajudava a sobreviver a angustias decorrentes dos dias comuns na sociedade capitalista, poderia levar-me a sentir o desejo de conhecer outros livros do seu micro-historiador. Não tinha maturidade para perceber que iniciava um estudo indiciário, e que, logo em seguida isso geraria uma pesquisa de mesmo caráter.

Hoje percebo que o caos favorece a visualização mais clara da realidade. Em meio ao caos, socialmente político e econômico, que afetava a minha trajetória e agravava-se nos anos finais de graduação, eu passava a perceber melhor a fragilidade da democracia liberal. Estava em uma democracia que me colocava como pessoa “sem futuro”. Como pessoa menor. Como alguém inapropriada, primeiro à Universidade Pública Federal brasileira, depois a Pós-Graduação. Cabia-me, no máximo, o exercício da docência na educação básica, sem direitos trabalhistas. Quando muito, deveria retornar ao interior de Alagoas, para a vida que me foi estabelecida, sem existência da possibilidade de escolha. Após o curso de Licenciatura em Pedagogia, seria apenas mais uma pessoa com um título. Prevalecendo uma identidade: a de pobre. Me caberia exercer o missionário trabalho docente, sem preocupações financeiras. O estudo e a escrita, pareciam e parecem coisas inapropriadas a minha classe. Realidade que defini, em outro momento, como necrófila (SILVA, 2023).

Da análise, que até meados de 2018, conseguia fazer à realidade, nasceu o interesse pela investigação histórica, atenta ao processo de precarização do trabalho docente. Notei que essa precarização poderia ser analisada a partir da escrita de mulheres atuantes no magistério primário. Tanto no tempo presente, por meio dos diários de iniciantes no magistério, contatados por meio da pesquisa na qual era colaboradora, quanto no passado, por meio dos mais diferentes documentos deixados, sobretudo, por mulheres que exerceram tal ofício. Atentei, inicialmente, aos anos iniciais do século XX (SILVA, 2021a). Iniciei buscas autônomas e imaturas em acervos virtuais e físicos, guiada por cursos que eram ofertados pelas mais diferentes universidades públicas do país (Idem).

Fiz uma seleção, sem muitas expectativas, para a Realização de Mobilidade Acadêmica Nacional, organizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), ainda em 2018, e apresentei meus interesses de pesquisa, em plano de estudos. Desejava conhecer melhor a História das Mulheres para, a partir disso, encontrar possíveis caminhos para a Pesquisa que desejava continuar em etapas posteriores de formação. Após a aprovação, fui convidada a escolher qualquer Universidade Pública Federal do país. Muitos eram os lugares significativos à pesquisa. Várias foram as instituições listadas. Mas a limitada Assistência Estudantil ofertada pelo programa, me impedia de escolher lugares externos ao Nordeste. Selecionadas a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), decidi escolher a segunda opção. Os meses passados na Graduação em Pedagogia da UFPB, levou-me a definição do meu objeto de pesquisa a ser amadurecido na formação inicial, e a ser levado para um programa de Pós-Graduação, como proposta. Percebia, aos poucos, que o que desejava estudar, vinculava-se a outras pesquisas nordestinas e brasileiras.

Ao visitar alguns acervos, físicos e virtuais, chamou-me a atenção, a ampliação da miséria, anunciada recorrentemente em jornais, e justificada pelas frequentes crises pandêmicas (SILVA, 2021a). Crises que deixaram ao relento muitas crianças órfãs, desde os primeiros anos de república (Idem). Eram essas as crianças que se matriculavam nas instituições públicas femininas (SILVA, 2023, 2022a). Algumas, pelo que indiciam jornais da década de 1950, tornavam-se datilógrafas (Idem). Profissão que parecia comum entre moças pobres, nos grandes centros. Outras órfãs podem ter exercido à docência, como é o caso da alagoana Rosália Sandoval (PEREIRA, 2015). As possibilidades de futuro, em alguns casos, dependiam do nível de formação recebido. Realidade que mostra que a leitura da História, nos leva a notar que alguns fenômenos se repetem, no transcorrer dos séculos. Recordei o que havia lido sobre a vida de Menocchio: “[…] o fato de saber ‘ler, escrever e somar’ deve ter favorecido Menocchio” (GINZBURG, 2006, p. 32). Pensei sobre a minha História. Para alguns a formação elementar, para outros a formação clássica. De um modo geral, o contato com a cultura letrada levava a ocupação de postos diferentes nos variados espaços sociais, fossem estes brasileiros ou mesmo externos ao país. Dentro do capitalismo, essa era uma forma de fazer-se perceber. Assim foi a escrita de professoras atuantes, desde a instalação da República, no Brasil. Rosália Sandoval discorria sobre as traças que lhe atingiam quando passava a mostrar-se escritora na imprensa alagoana (SILVA, 2023). Mostrava, a partir disso, o incomodo de outros diante do acesso que ela passava a ter no espaço público, por meio do desenvolvimento da habilidade escriturária. Não diferente, experienciavam outras mulheres na américa, inclusive as participantes de grandes projetos educacionais (SILVA, 2021a). Elas estavam deslocadas. Lhes cabia o magistério e o lar, mas ultrapassavam o ultraje. O olhar a condição feminina no contraditório espaço público, sobretudo no exercício docente, desde o fim do Império, fazia surgir novas perguntas, e guiava as mais novas idas aos acervos. Resultados iniciais da investigação foram sendo dispostos em publicações recentes (SILVA, 2022, 2022a) e antigas (SILVA, 2020, 2021a). Mesmo nos momentos que não eram demarcados por crises sanitárias, o território brasileiro mantinha-se propício à desumanização dos subalternos. Situações que comprovavam que o problema social existente nesse e em outros tempos, era gerado pela estrutura: líderes e subalternos. Como já coloquei: elite e proletariado. Estrutura permanente enquanto não houver uma transformação radical da organização social.

Hebelyanne Pimentel da Silva

Referência

 

ALMEIDA, J. S. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? Campinas: Autores Associados, 2007.

 

ALMEIDA, J. S. Mulher e educação: a paixão pelo possível. 1. ed. São Paulo: Unesp, 2011.

 

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 66. ed. São Paulo: Paz e terra, 2018.

 

GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

 

MARX, K. O Capital: critica da economia política. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996.

 

PEREIRA, M. R A. Autoria feminina no século XIX: Rosália Sandoval. Interdisciplinar: Revista de Estudos em Língua e Literatura, Sergipe, n. esp., v. 23, 2015. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/article/view/4079>. Acesso em: 4 set. 2021SAVIANI, D. Escola e Democracia. 43. ed. São Paulo: Autores Associados, 2018.

SILVA, H. P. da. A escrita de intelectuais alagoanos: fragmentos da democracia liberal e suas contraposições (1930–1932). Revista Cocar, v. 16, n. 34, 2022. Disponível em: <https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/5109>. Acesso em: 01 out. 2022.

 

SILVA, H. P. da. A fundação de bibliotecas públicas em alagoas: reivindicações e denúncias da educadora Maria Mariá (1953-1954). Research, Society and Development, v. 9, n. 9, 2020. DOI: 10.33448/rsd-v9i9.7186. Disponível em: <https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/7186>. Acesso em: 01 out. 2022.

 

SILVA, H. P. da. Configurações da docência feminina em escritos pedagógicos da educadora Rosália Sandoval (1918-1921). Mulher e trabalho docente no Brasil. Campina Grande, 2023.

 

SILVA, H. P. da. Fragmentos de precarização do trabalho docente: leituras da formação NORMAL de professoras alagoanas (1932-1959). Revista Cocar, v. 17, n. 35, 2022a. Disponível em: <https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/5542>. Acesso em: 01 out., 2022.

 

SILVA, H. P. da. Uma década de prosa: impressos e impressões da professora e jornalista Maria Mariá (1953-1959). Fortaleza: EdUECE, 2021a.

Sobre o autor

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É Pedagoga e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver por aqui, reflexões, majoritariamente autobiográficas, sobre o conceito de democracia na sociedade capitalista. Escreve, esporadicamente, poesias e crônicas.


10 Replies to “O mito da democracia na sociedade capitalista: cruzamentos entre história de vida e construção de um objeto”

  1. Magdiel

    Simplesmente essencial! Adorei a proposta da inserção de um olhar amplo, contemplando a intersecção entre classe e gênero sob a ótica do chamado “subalterno” dentro da formação docente numa sociedade capitalista e extremamente elitista. A projeção da história de vida e construção acadêmica nessa conjuntura é enriquecedora para muitas e muitos que (sobre)vivem nessa nossa realidade brasileira.

  2. Ana Paula Fernandes

    Texto enriquecedor, com trajetória marcante e similar a realidade vivenciada por muitas mulheres que buscam um caminho de oportunidades e direitos. Me fez refletir e questionar, quantas necessitam de um olhar esclarecedor sobre sua posição perante essa sociedade opressora?

  3. fabiana

    muito importante esse olhar critico da sua trajetória que marca a necessidade de enxergar o quanto a formação profissional é importante e precisa ser acessada por todos sem distinção de classes, raça e gênero.

  4. Hebelyanne

    Verdade meninas e meninos. Vivemos em um mar de tubarões e isso não é novo. Álvaro Vieira Pinto já trazia reflexões importantes ao propor uma reforma universitária na década de 1960. Infelizmente não evoluímos.

  5. Hebelyanne

    A conjuntura e as condições de vida de estudantes universitários e docentes da Educação Básica (na atualidade), me levam a perguntas constantes. A primeira delas: Será que evoluímos? Será que vivemos mesmo em uma democracia? Será que o presente se diferencia do passado? E como era o passado? Que democracia é essa que experienciamos como pessoas pobres? Será que o feudalismo acabou mesmo? Estamos em plena paz? Será que somos coerentes? Dizemos o que fazemos? Escrevemos sobre o que somos? Somos o que a escrita diz? Será que escrevemos sobre o que somos? Nos colocamos favoráveis ou contrárias a nossa condição? Servimos ao coletivo ou aos donos do poder?

    Tentei responder algumas dessas perguntas nos textos que já divulguei.

  6. Hebelyanne

    Tenho questionado o sentido de democracia divulgado na sociedade capitalista, e mostro como isso afeta o trabalho docente. Em alguns textos, já divulgados, decidi expor como a construção de um imaginário de docência, tem culminado no processo de precarização do trabalho. Como afeta o exercício da gentitude.

  7. João C L Soares

    Hebelyanne é uma brilhante acadêmica, sempre buscando desvendar pontos cegos, ou seja, temas ainda não abordados sobre as realidades do Brasil. Um dos temas de seu interesse é a compreensão do complexo e nebuloso mundo dos direitos autorais no Brasil.

  8. João C L Soares

    Hebelyanne é uma brilhante acadêmica que sempre busca abordar pontos cegos, ou seja, aspectos ainda não abordados sobre o complexo Estado Brasileiro. Um desses temas de interesse é o nebuloso mundo do direito autoral brasileiro no mundo acadêmico.

  9. Hebelyanne

    Obrigada, caro João Soares.
    Esse debate sobre “direitos autorais” tem colocado-se mesmo emergente. Está dentro de um grande tema que muito me interessa como pessoa: o Respeito.

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