Quadrinhos não têm que ser coisa só de nerd

Há um reducionismo sobre as histórias em quadrinhos como mídia voltada para o público nerd. As possibilidades desse formato são infinitas, mas o preconceito, o desconhecimento e a massiva publicidade não colaboram para que esse gênero se firme como deveria.

Publicado originalmente na quarta edição da revista Editoria Livre (baixe aqui)

Ainda fico impressionado com a quantidade de pessoas que estudaram no Colégio Estadual de Ipiaú – Atual CEI – e não sabem que, antes da Reforma Educacional de 1976, ele era o Ginásio Estadual de Ipiaú – por isso até hoje é chamado de GEI.

Sim, meu amigo. Recordar é viver.

Não cursei a alfabetização, esse é o motivo de eu ter uma letra tão horrorosa. Frequentei durante pouco tempo uma escolinha desse tipo, que funcionava no prédio da Igreja Batista Moriá, no bairro São José Operário. Antes que me perguntem: sim, esse “Moriá” é sem “h” e com acento agudo no final. Fui logo transferido para a primeira série na Escola Anexa à Escola Normal de Rio Novo. Minha mãe já havia me alfabetizado com o uso da Bíblia. Sei que tem muita gente que acha um absurdo, mas esse método de alfabetização não me prejudicou em nada. Sou até capaz de dizer que leio melhor que muita gente que foi alfabetizada por métodos mais… modernos. Melhor nem entrar nessa discussão agora.

Estudei da primeira à quarta série na Escola Anexa. Tinha como amigos o Murilo – que eu conhecia desde sempre – e o Ivonílton, que hoje é um importante cantor de hip-hop da região cacaureira. Atualmente ele gosta de ser chamado de Nêgo Freeza, ou algo assim.
Éramos todos muito próximos até um final de semana em que o Ivonílton resolveu fazer uma visita à minha casa. Na época eu morava com a minha avó num barraco cor de rosa, no alto da Pedreira. Meu colega chegou com um boneco do He-man nas mãos, daqueles que custavam um rim. Eu era muito pobre e não podia me dar ao luxo de ter aquele tipo de brinquedo. Eu costumava fabricar pequenos “robôs” usando garrafas de água sanitária – a famosa Qboa –, gravetos, vasilhas de margarina e o que mais tivesse à mão. Minha maior diversão era confeccionar esses projetos. Meu colega, com a típica sinceridade inerente às crianças, riu da minha cara e debochou da minha situação.

Na segunda feira ele tentou ridicularizar o caso frente aos colegas. Fui logo defendido pelo Murilo, que conseguiu inverter o caso. Ele, o Murilo, ressaltava – de modo exagerado, é bom que se registre – que eu era quase um cientista dos brinquedos e que ele gostaria de ter as mesmas habilidades. Eu achei que aquela situação morreria ali, mas estava enganado.
Ao término da quarta série era preciso mudar de escola. A maior parte dos colegas foi, assim como eu, estudar no Colégio Estadual. Murilo não estava entre eles, Ivonílton estava.

Alguns trotes eram aplicados aos calouros daquela instituição. Não sei se foi para diminuir o suplício desses trotes ou se foi por simples exibicionismo inconsequente, mas o meu nobre amigo retornou com as humilhações. Daquela vez, no entanto, a versão sofreu ligeira modificação. Segundo esse novo relato, eu era um tipo esquisitão, que possuía trejeitos de cientista maluco e que – pasmem – teria convencido todos os colegas da escola anterior que eu havia construído uma bicicleta usando apenas canos de PVC. Até hoje não sei de onde ele tirou essa ideia genial.

Eu era calouro, desajeitado, um tanto feio e antissocial. O apelido pegou. Fiquei conhecido em todo o GEI como o cientista. Tentei levar na brincadeira no início, mas não deu resultado. A única solução encontrada foi o afastamento. Comecei a me isolar. Na hora do intervalo eu estava sempre na biblioteca. Evitava conversas que fossem além do essencial.

Alguns meses depois eu vi três moleques mais esquisitos que eu sentados nas escadarias do prédio principal. Eles estavam travando uma discussão calorosa. Tentavam definir quem era mais forte: o Hulk ou o Thor?

– O Hulk conseguiu levantar o martelo de Thor! – disse um deles.

– Mas só porque ele tem o coração puro. – Argumentou um outro.

Eu achei aquela discussão engraçada. Segui meu caminho e fui direto para a biblioteca. Eu costumava ler muitas histórias em quadrinhos da Disney e da Turma da Mônica. Já havia tentado digerir uma história de super-herói – Os Novos Titãs 21: Última esperança de Atlântida – mas achei muito chata. Eu até gostava da animação dos Superamigos produzida pela Hanna-Barbera, mas os quadrinhos me desanimavam.

Mais algumas semanas se passaram até que eu encontrei um daqueles garotos na biblioteca. Ele estava olhando um desenho de Simbad, o marujo, que estava impresso na guarda de um livro. Copiava com perfeição os traços da figura em seu caderno de desenho. Dois ou três garotos já estavam se aglomerando em volta. Olhavam embasbacados. Também fiquei impressionado. Como ele conseguia fazer aquilo?

Me aproximei. Tentei puxar assunto. Ele perguntou se eu gostava de quadrinhos, eu disse que sim. Você já leu a batalha de Thor contra Jormungand?, ele quis saber. Só aí me dei conta de que ele estava falando de quadrinhos de super-heróis. Fiquei com vergonha de dizer que não gostava daquele estilo.

– Ainda não li essa – respondi sem muita convicção.

– Eu tenho em casa. Trago depois para você ver. Os desenhos são incríveis. – respondeu sem demonstrar desconfiança.

Ele terminou o desenho e assinou alguns traços na vertical, parecia que estava desenhando grama.

– O que é isso aí? – perguntei confuso.

– Meu nome. Eu sou Aiala. – disse me estendendo a mão.

– Fagner – respondi meio sem graça.

Até aquele momento, além dos já citados gibis infantis, eu lia muito os livros da Coleção Vagalume. Não tinha uma única publicação sobre super-heróis em casa. Lembrei-me, no entanto, que a minha prima Sandra havia ganhado uma caixa cheia daquele tipo de revistinhas. Um vizinho que havia se mudado e não tinha como levar a coleção deixou tudo com ela. Para a minha sorte, Sandra também achava chato e não lia nada daquilo. Resolvi fazer uma visita.

Pela forma como encontrei as edições dentro da caixa, percebi que havia certa organização no modo em que as revistas foram dispostas. Esse foi o meu primeiro aprendizado sobre histórias em quadrinhos. Muito mais do que se divertir com a história, os leitores querem possuir o exemplar, catalogar, colecionar. O importante é mostrar para o outro fã que você tem aquele número raro, aquela edição esgotada, aquele volume caríssimo que custa os glóbulos oculares da face.

Podemos definir o colecionismo como o ato de possuir um conjunto de objetos. Normalmente, tais objetos estão relacionados às experiências nostálgicas. Alguns adultos costumam colecionar peças às quais se apegavam, na infância e na adolescência, para fugir das incertezas da vida real. Como não é possível controlar o mundo ao nosso redor, o colecionador contenta-se em controlar a sua coleção.

O ato de ajuntar material surgiu em nós, seres humanos, muito cedo, desde o período em que ainda éramos nômades e precisávamos carregar objetos que nos eram úteis. Colecionar está relacionado ao ato de possuir. Com o passar do tempo estendemos o colecionismo aos objetos religiosos e simbólicos. Possuir algo pode mudar a percepção que o outro tem de mim. Afinal, eu não sou julgado apenas pelo meu ser, mas também por aquilo que possuo.
Em resumo, o colecionismo pode dar a sensação de ordem, aquietando as angústias mais primitivas.

É possível aprender muito sobre o colecionador apenas olhando sua coleção. Quais foram os motivos para que escolhesse colecionar X e não Y? O que ele está buscando? Um gatilho para as lembranças da infância? Prestígio? Controle? Seria apenas uma busca pelo conhecimento? Pelo poder?

O filósofo francês, George Bataille, em seu livro O Erotismo, aponta que, para ganhar sentido de permanência, os seres humanos começaram a exteriorizar a sua existência em objetos, em ambientes, ou a relacioná-la a fenômenos e sentimentos regularmente produtores de um bem-estar físico e espiritual. Foi por meio desse processo, segundo o autor, que nós passamos a classificar e ordenar os objetos. Assim teria se iniciado as primeiras coleções no sentido em que temos hoje.

Régis Debray, outro filósofo francês, em seu livro Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente, complementa a visão de Bataille ao nos lembrar que as primeiras imagens figuradas foram registradas em urnas funerárias. Em outras palavras, as imagens figuradas surgem para representar algo que não é palpável ou que não está presente. O ser humano passa a representar seus mortos por meio de figuras, instaurando assim uma aproximação maior com o abstrato. Esse seria também um primeiro passo para a criação figurativa de personagens mitológicos, que dariam origem – milênios depois – aos super-heróis das histórias em quadrinhos.

Minha prima disse que eu poderia levar todos aqueles gibis para casa. “Estão ocupando espaço aqui”, justificou. Saí todo contente, com dificuldade para carregar a caixa de papelão cheia de revistinhas.

Chegando em casa, tentei organizar da melhor forma que eu pude aquele meu novo acervo, mas acabei concluindo que o modo com que estavam dispostas dentro da caixa já era mais que suficiente. Resolvi ler algo para ter o que comentar com o meu novo amigo da próxima vez que o encontrasse. Comecei pela edição de Os Novos Titãs que eu já conhecia, aquela mesma que eu não tinha gostado. “Vamos tentar de novo, agora vou descobrir o que há de tão especial nessas histórias”, pensei.

Algumas coisas se mostraram realmente interessantes. O personagem que eu conhecia como Robin, aquele meio afeminado que era parceiro do Batman, agora se chamava Asa Noturna e tinha um caso com uma alienígena de olhos verdes e curvas generosas chamada Koriander. Havia uma clara tentativa de masculinizar o Menino Prodígio. Os heróis se feriam, seus uniformes rasgavam e eles até sangravam, diferentemente do que acontecia nos desenhos animados. Muitos personagens, citações e referências que eu não conhecia. Era todo um universo a ser explorado.

Aquela história me pareceu mais interessante a partir da segunda leitura. É muito provável que isso tenha ocorrido por força da minha boa vontade em entender o contexto e de pertencer àquele grupo de admiradores dos quadrinhos.

Hoje é comum conhecer alguém que se auto intitule nerd. Se o indivíduo gosta de histórias em quadrinhos, vídeo games e filmes de super-heróis, certamente vai se classificar como tal. Ainda mais depois da ascensão de vários blogs que ostentam o vocábulo no título (Jovem Nerd, Blog Nerd e Geek, Zona Nerd e tantos outros). Essa classificação, no entanto, me parece pouco natural para a realidade – ou seriam as realidades? – brasileira. Até há bem pouco tempo, nós classificávamos os estudiosos como CDFs (Cu De Ferro) em referência ao tempo excessivo que passavam sentados lendo. Se o indivíduo fosse muito organizado, metódico, era chamado de caxias, em referência a Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias que, segundo as más línguas, era uma pessoa extremamente organizada.

O termo nerd é um adjetivo importado. O escritor americano Theodore Seuss Geisel (Dr. Seuss) lançou em 1950 um livro chamado “Se Eu Dirigisse um Zoológico” (If I Ran the Zoo, no original). O personagem narrador, chamado Gerald McGreew, enumera os espécimes que gostaria de ter em seu zoológico imaginário: “um Nerkle, um Nerd e um Seersucker também”. Esse é o primeiro registro do termo. No entanto, reza a lenda de que ele seria mais antigo, viria da década de 1940, derivado de “knurd” – a palavra “bêbado”, em inglês (drunk) escrita ao contrário. Seria uma forma de dizer que o sujeito passou o tempo estudando em vez de ter ido às festas encher a cara.

Um ano depois da publicação do livro de Seuss, numa reportagem sobre os hábitos da juventude na cidade de Detroit, a revista Newsweek anunciava que os jovens de comportamento menos sociável, chamados à época de “quadrados”, eram classificados como nerds pelos mais festeiros.

Em resumo, este é um termo muito específico da cultura americana que foi espalhado pelo mundo pelo poder da propaganda e da indústria cultural. Aqui no Brasil, o termo só veio a se popularizar em 1984, com o filme “A vingança dos Nerds”, dirigido por Jeff Kanew. A produção narra uma história insólita em que os estudantes esquisitões, com dificuldades sociais, inabilidade física e alto intelecto resolvem enfrentar seus colegas mais descolados e esportistas.

No início da década de 1990, na cidade de Ipiaú, aquela era apenas a turma que gostava de revistinhas. Nada mais. Não me recordo de nenhuma pessoa daquele período que se intitulasse como nerd ou algo parecido.

Quando voltei a encontrar o meu amigo desenhista, eu já tinha muita coisa para contar. Queria demonstrar o quanto entendia da mitologia do universo de super-heróis, mas a verdade é que eu nem sabia das diferenças básicas entre o Universo Marvel e o Universo DC. Era um completo ignorante.

Fui aos poucos sendo apresentado ao restante do grupo. Mas todos se mantiveram distantes nesse primeiro momento. Giva e Josimar só viriam a consolidar uma amizade anos depois. Desconfio que Aiala também teria me evitado se pudesse. Mas eu descobri que, para ir e voltar da escola, ele fazia o mesmo caminho que eu. A partir daí, eu dava um jeito de sempre encontrá-lo no caminho, chegava ao cúmulo de passar na casa dele para que fôssemos conversando.

Fico imaginando o quanto aquele período deve ter sido cansativo para ele, que nunca se mostrou mal-educado ou prepotente. Não se importava que eu o observasse enquanto desenhava. Foi ali que tudo começou. Foi por causa dessa primeira influência que resolvi levar o desenho a sério.

Copiávamos os desenhos das poses mais esdrúxulas das nossas revistas. Tentávamos decorar cada traço, cada hachura, cada formato. As histórias em quadrinhos serviam como desculpa para a interação social, fomentava em nós o interesse pelo desenho e ainda serviam como forma de entretenimento literário. Era mais próximo do cinema do que da literatura, é bem verdade, mas estávamos cultivando a leitura. É claro que eu meu hábito de ler era mais antigo, mas era com livros – principalmente da coleção Vaga-Lume – que eu não tinha com quem discutir ou compartilhar. Os quadrinhos serviram de meio para a interação social, mesmo que essa interação tivesse um número bem reduzido de pessoas. Aquela era uma forma de comunicação muito poderosa. Os gibis vinham alimentando a amizade de jovens brasileiros havia algumas décadas.

Convencionou-se adotar como marco inicial de origem da arte sequencial a data de 1895, ano de criação do Yellow Kid, de Richard F. Outcault, no jornal norte americano New York World. Isso não significa que as histórias em quadrinhos estejam presentes apenas nos últimos cem anos da trajetória humana. A necessidade de narrar com a ajuda de imagens sequenciais é tão antiga quanto nossa habilidade para desenhar. Como diria Scott McCloud, as histórias em quadrinhos são formadas por “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador”.
Se tomarmos esse pressuposto como verdade, poderemos imaginar que a origem desse meio de comunicação é muito mais antiga. Por exemplo, a pesquisadora Sonia Luyten garante que “as origens das HQs estão justamente no início da civilização, onde [sic] as inscrições rupestres nas cavernas pré-históricas já revelavam a preocupação de narrar os acontecimentos através de desenhos sucessivos”.

Sendo assim, podemos classificar todas as tentativas, das mais variadas civilizações do passado, de construir uma narrativa usando desenhos sequenciais, como representantes dessa tradição. Veja as tapeçarias do Oriente, os afrescos italianos, os mosaicos gregos, as lanternas chinesas e tantas outras representações. Observe as pinturas na caverna de Lascaux. Essa é uma necessidade que sempre esteve presente em nós humanos.

Durante o início da década de noventa eu não sabia nada disso. Estava entusiasmado por ter encontrado um novo passatempo, a leitura dos quadrinhos; uma nova habilidade que deveria desenvolver, o desenho; um grupo de amigos que poderia aporrinhar, Aiala, Josimar e Giva e um novo hobby, colecionar revistinhas.

Meu amigo Aiala nunca se convenceu dos meus conhecimentos quadrinísticos, mas incentivou em mim o hábito do desenho. Com o passar do tempo fiz cursos e me profissionalizei. Hoje já não ganho a vida com isso, mas exerço a função como freelancer quando tenho a oportunidade.

As amizades daquele período conservo até hoje, apesar de termos tomado caminhos diferentes. Já não leio quadrinhos de super-heróis, não acompanho filmes ou séries do gênero, mas ainda acredito no poder de comunicação dos quadrinhos como mídia. Já vi reportagens muito bem-feitas nesse formato. Produções exclusivas como Maus: a história de um sobrevivente, ou Cachalote, para citar uma publicação nacional. Fico triste que a linguagem ainda esteja atrelada quase que exclusivamente ao universo nerd – seja lá o que isso signifique.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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