Eu e o meu amigo Paulo: notas de um EST(ud)AR

Recordo que ao escrever a obra “Uma década de Prosa”, me vinham a mente, muitas vezes, os primeiros contatos que estabeleci com a obra de Paulo Freire. Falei sobre isso no primeiro texto divulgado por meio dessa coluna: “O mito da democracia na sociedade capitalista: cruzamentos entre história de vida e construção de um objeto. Freire foi um dos meus orientadores. Como morto, tem formado pelo legado de ética e competência. 

Autora: Hebelyanne Pimentel da Silva.

Vejo o contexto de negação da realidade, vivificado no tempo presente, decorrente da hipocrisia que afeta as mais diferentes dimensões. Decorrente da (in)vergonha. Da desumanização agravada pelo capitalismo selvagem que coloca as pessoas umas contra as outras e diz existir um lugar para cada grupo social, a ser ocupado independente das ações necessárias a efetivação disso. Estamos em pleno mar? (necessária alusão a Castro Alves). Um mar de Tubarões, como fazia entender Bertolt Brecht. Estamos em uma guerra psicológica? Seriam todos por nenhum?

Um dos fenômenos mais interessantes, na sociedade existente, durante esse tempo pandêmico, foi o seu cair de máscaras. Ficaram tão visíveis todas as coisas. A estrutura social estava bem em nossa cara. As castas definiam quem ficava e quem saia de casa. As castas definiam o viver. Espera, mas sempre foi assim, realmente. Será que apenas eu percebi agora? Será que o problema estava em minha pouca idade ou na imaturidade? Desde a invasão que nos retirou a possibilidade de viver livremente e em paz com os outros, as coisas são assim. Tem razão. Eu estive mesmo em estado de ilusão. Mas é verdade que passamos muito tempo percebendo com menor intensidade tudo isso. Estávamos em estado de alienação. Concordo com uma das colocações públicas feitas por Lilia Schwarcz, em um desses últimos anos, quando ela dizia ser este o início de uma nova era. Como sempre visto, diria que continua a ser a era da desesperança de alguns, ao lado da evolução da riqueza de outros. Nada modificado, na prática.

A disparidade que estrutura a sociedade brasileira, se manteve, e parece distante de transformar-se. Uma elite que sobrevive às custas do proletariado. Como tenho sido repetitiva ao bater sempre na mesma tecla. Uma tecla incômoda. Afinal, porque falar sobre isso, não é mesmo. Uma tecla que deveria ser ultrapassada. A tecla das pessoas problemáticas. A tecla das pessoas mal amadas. A tecla de quem da vida não vive nada. Mas como viver?

O ato de conhecer, causa mesmo muita dor, já dizia Paulo Freire em “Pedagogia do Oprimido”. Aqui estou me repetindo novamente. Pareço ter lido apenas um livro em toda a vida. As vezes pareço ter contatado apenas um velho Paulo. Um autor definido por liberais, de ontem e de hoje, como desnecessário. Um Paulo tão incompreendido, distorcido e as vezes reprimido. Um Paulo que já saiu da boca dos que praticam tantos dos tipos de tortura que ele criticava. Um Paulo que, já teve sua fotografia posta ao lado de um canalha que dizia o seguir. Como alguém sem ética pode o mencionar? Sempre me perguntava. Será que essas pessoas realmente o conheceram? Então fiz uma interpretação equivocada? Paulo Freire é mesmo capaz de fundamentar ações como as dessas pessoas? Como assim? Ele defendia isso? O que ele diria da tortura psicológica praticada por essa pessoa que o cita? Não era esse tipo de gente que ele dizia abominar? Qual parte da sua obra essas pessoas podem citar? Será que fizeram apenas a leitura do 4º subtítulo do primeiro capítulo da supracitada obra: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão”. Mas mesmo nessa frase, popularmente conhecida, ele já dizia tanto. Falava sobre “comunhão”. O que ficou interdito nisso?

Já no primeiro capítulo do supracitado livro, Paulo Freire discorreu sobre a necessidade de fazer construir no oprimido, a percepção clara da opressão que o afeta. Ao tempo que alertou sobre a importância da conscientização para o processo de libertação do pensamento, algo já trabalhado nos primeiros anos da década de 1960 por intelectuais do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Moacir Gadotti informava, em prefácio da obra “conscientização”, que o conceito fazia alusão ao desenvolvimento crítico da tomada de consciência, e havia sido compreendido pedagogicamente por Freire. É possível dizer, a partir das leituras, que só se educam, verdadeiramente, os que se conscientizam. Muitos intelectuais críticos defenderam e defendem essa perspectiva. Álvaro Viera Pinto alertava para a necessidade de se transformar os espaços que formavam professores, para que esses ambientes ultrapassassem o tecnicismo e trabalhassem com o desenvolvimento de profissionais capazes de interferir no modo de ser do país. Não por ventura, o intelectual publicou obras sugestivas a revolução, como: “A questão da Universidade”. Na última sugeria a reforma de tal instituição, em função de sua adesão aos interesses da classe desvalida. Álvaro foi um amigo e orientador de Freire. Ambos foram exilados em tempos de repressão e seus escritos tratados como subversivos durante a Ditadura Militar. Ditadura que deixou resquícios. Será que saímos dela? Ela saiu de nós?

Atualmente pensar de tal maneira ainda se coloca como inapropriado. Por apresentarem a realidade como é, sem máscaras, os textos de pessoas como essas, causam incomodo. São intoleráveis entre os que oprimem e desejam manter privilégios. Freire, que muitas vezes se fundamentou em Lênin, mostrou que não existe revolução sem a transformação radical das estruturas da sociedade, e transformar as estruturas, significa retirar servos e senhores de posições originárias e coloca-los em condição de igualdade de direitos e deveres.

A produção de isebianos e dos que nele inspiraram-se, revela como o conhecimento clássico somado ao contato com a realidade concreta, possibilita a tomada de consciência, e, consequentemente, os processos de libertação. Não por ventura, uma das estratégias da burguesia é negar o acesso à informação e tornar superficial o contato com o conhecimento historicamente acumulado pelo conjunto da humanidade. Dermeval Saviani, tem analisado o fenômeno em estudos ainda em desenvolvimento.

A escola e a sociedade negam Freire porque negam a realidade concreta para que consigam sobreviver a selvageria do capitalismo. Negam a atualidade desse pensamento, porque não conseguem lidar com a dor por ele causada aos mais distintos seguimentos.  Definir o escritor de “Pedagogia da Esperança” como alguém ultrapassado, pode ser mais confortável diante das impossibilidades de mudança. Os fatos desvelam que, carecemos de criticidade e de coragem. Sem isso, não conseguimos trans(formar). Nunca é excessivo apontar o dedo para problemas vigentes, portanto, Freire não é um educador do Passado. Ele é emergente no presente e indispensável nas reflexões e planejamentos para um mais humanizado futuro. Para um futuro no qual possamos dizer que ninguém deve ocupar a posição de: esfarrapado, marginal, desvalido.

Sobre o autor

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É Pedagoga e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver por aqui, reflexões, majoritariamente autobiográficas, sobre o conceito de democracia na sociedade capitalista. Escreve, esporadicamente, poesias e crônicas.


6 Replies to “Eu e o meu amigo Paulo: notas de um EST(ud)AR”

  1. Marcio Roberto de Lima Silva

    Hebelyane nos trás a lembrança através deste texto o ponto fulcral na obra de Paulo Freire quando cita a importância da conscientização para o processo de libertação do pensamento, ” SER MAIS”. Excelente texto!

  2. João C L Soares

    Existem livros que são como amigos. Amigos que nunca vimos mas com os quais conversamos através dos textos.

  3. Larissa Alves

    Muito pertinente suas colocações, Bella. Falar sobre transformação social, através de conscientização e emancimapação das classes oprimidas e menos favorecidas, somente é inapropriada e afeta àqueles que a ela temem.

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