Pressuposições em torno da palavra “AUTOR”

Significações necessárias à vida. Pensando com os meus botões.

Recordo que já na infância, quando conhecia as primeiras letras, me foi apresentada uma importante obra: o Dicionário Aurélio. Um livro utilizado por todas as crianças e adolescentes que buscavam desvendar os mistérios da língua portuguesa. Se tinha uma dúvida gramatical, corria para lá, e buscava as respostas que precisava. O dicionário tornou-se um companheiro nos dias de desespero. Quando não queria expor, em meio a outros, as minhas ainda pequenas habilidades com o universo letrado, me perdia entre as páginas numerosas daquele livro.

Tempos mais tarde, descobri que aquele texto havia sido escrito pelo Lexicógrafo alagoano Aurélio Buarque de Holanda. Ele que nasceu em 3 de maio de 1910, na cidade Passos do Camaragibe, e faleceu em 28 de fevereiro de 1989, na cidade do Rio de Janeiro. Ele que ocupou a 30ª cadeira na Academia Brasileira de Letras. Agora, em plena vida adulta, esse livro repleto de simbologias, acompanha o meu trajeto acadêmico. Ele mostra como um autor pode se tornar clássico. Como um autor pode ser eternizado por meio do que produziu. Quando pronuncio a palavra “Aurélio”, dificilmente alguém deixa de associa-la ao dicionário. Aurélio foi um intelectual de grande valor. Hoje, recorri a ele para buscar uma palavra que o define perfeitamente: AUTOR.

O que seria um autor? Muitas são as proposições contemporâneas para tal palavra. As vezes ela tem sido confundida com o que vem a identificar outras funções: auxiliar, orientador, coautor. Recordo que, antes de ingressar, com maior efetividade no universo da escrita acadêmica, cheguei a confundir os termos. Eu já conhecia alguns autores e percebia que a definição tinha um significado. Eu sabia como se constituíam obras literárias, por exemplo. Alguns dos professores que, por minha vida passaram na Educação Básica, escreviam poesias, ou mesmo cordéis. Eles eram lembrados por suas rimas e pelos títulos de livros. Até pelo pseudónimo literário. Sempre os admirei por isso. As obras diziam do que eram e da relação que estabeleciam com os textos. E eu pensava: Se um dia escrever algo, quero que seja com esse significado. Então o significado da palavra AUTOR, me parecia mais que evidente. Foi quando publiquei os meus primeiros textos acadêmicos autorais, que isso começou a me parecer confuso. Ouvi de algumas pessoas próximas algo do tipo: “para publicar qualquer texto acadêmico você precisa colocar o nome de alguém com título de doutor para dar credibilidade ao seu texto”. Por muitos momentos me peguei a refletir sobre isso. Como uma titulação poderia credibilizar o meu texto? Porque seria importante o nome de alguém com uma titulação superior à minha em uma produção de minha autoria? A palavra AUTOR, que antes era parte da minha rotina, passava a receber nova significação. Mas segui escrevendo só, e publicando mal e individualmente. Para alguns espaços, aquele conselho ouvido em outrora, não me parecia válido. Ao tempo que a minha escrita evoluía, escolhia lugares com avaliações mais rigorosas para a publicização dos meus humildes e pouco significativos textos.

Recordo que ao escrever o artigo por mim intitulado “A intelligentsia feminina na escola nova: uma leitura sem margens das crônicas de Cecília Meireles (1930-1932)”, passei longo período buscando por Revistas que o aceitassem apenas com o meu nome de autora. Eu era uma graduanda em pedagogia quando o conclui. Busquei por dias, meses e quase anos um espaço que aceitasse o meu texto como graduanda. As revistas retornavam sempre com a frase: “Você precisa colocar o nome do seu orientador!”. Outras diziam: “[…] precisa encaminhar com o nome de um Doutor”. Aos poucos a palavra orientador e autor confundia-se em minha imatura mente. Eu passei a acreditar que os meus textos só seriam válidos como científicos, se neles houvesse o nome de alguém a quem deveria chamar de orientador. E aos poucos, a minha escrita, que era própria e, por vezes única, precisava ser associada ao nome de alguém, mesmo quando este alguém, dela não era participante. Passei meses pensando sobre isso, quando buscava por um lugar para publicar o texto “A intelligentsia feminina na escola nova”. Ao submeter sozinha para a Revista HISTEBR, me foi dito que precisaria do nome de um doutor para que esse texto fosse avaliado. Busquei professores de variadas instituições e muitos falaram que não achariam ético colocar o nome em um artigo que já estava pronto. Muitos falaram que não havia condição de interferir em uma escrita que não iniciaram comigo. Aconselharam-me a publicar com a minha orientadora, mas eu não possuía orientação, na época. O texto era individual e decorria de uma pesquisa feita também individualmente. Mas poucos, que me desconheciam como aluna e pessoa, acreditavam nessa afirmação. Precisei colocar o nome de uma pessoa com título de doutorado, que nem conhecia, para poder ter a minha produção avaliada por uma relevante Revista Científica.

Hoje, quando olho o texto que marcou parte da minha trajetória na graduação, não sinto como se ele me pertencesse. O meu vínculo de autora individual se foi, porque a ele foi acrescentado um nome externo e desconhecido. Talvez com o nome de algum amigo com titulação de doutorado, eu estivesse mais confortável com o texto. Ao menos saberia que estava com a assinatura de uma pessoa conhecida. Por tempos tenho evitado citar o meu próprio artigo em novas publicações, porque ele parece não me pertencer. Parece uma mercadoria agora. Eu que o escrevi após tanto tempo de pesquisa e estudo. Eu que o tornei parte da minha vida de graduanda, não sentia mais como meu, o meu próprio escrito autoral. O submeti em 2020, com a primeira pessoa que me apareceu com titulação. Mais tarde o mostrei em um grupo de pesquisadores, quando o apresentava, uma pessoa levantou e disse: “Bacana esse texto, o autor estuda mesmo mulheres”. O meu trabalho era colocado como pertencente a outro alguém que não eu. A minha presença no texto parecia insignificante. Isso tornou-se ainda mais grave, tempos mais tarde, quando ouvi, após publicação de um livro autoral, alguns comentários, do gênero: “Quem escreveu esse livro?”;Ah, essa produção continua a pesquisa de qual pessoa?”; “Onde está o autor?”. Eu que conhecia o meu trajeto formativo e as dificuldades enfrentadas durante uma pesquisa solitária e difícil, muitas vezes silenciei na tentativa de não me prejudicar academicamente. Acreditei que poderia não estar claro para alguns o significado da palavra autoria. Com o passar do tempo e a intensificação dos comentários, fiz um único pronunciamento por meio da SBHE, ao compartilhar o primeiro artigo com título aqui citado. Hoje, quando olho para esse pronunciamento público, já percebo as suas imaturidades. Mas noto como ele foi importante e necessário. Como é significativo o ter transcrito em um site da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE). Como isso diz da nossa história presente. Da nossa necessidade de nos afirmarmos autoras e autores do que produzimos. De como temos nos construído em meio a escrita e as formas de publicações. Como temos desconstruído a significação dada por Aurélio, a palavra autor. Para o último AUTOR, seria a:

 

“Pessoa responsável por uma invenção ou descoberta; DESCOBRIDOR; INVENTOR”

 

Assim sendo, uma obra autoral é aquela que pertence a alguém que a deu origem. Na escrita, é autor, portanto quem deu origem a uma ideia e a concretizou por meio de texto. Partindo desse pressuposto, a obra pode ser monográfica, ou seja, individual. Todavia, quando este autor convida alguém externo para construir consigo algo que tem como ideia, esse alguém a somar pode ser caracterizado como COAUTOR. Portanto, o coautor, é a pessoa que produz junto e que participa ativamente de uma construção, embora não tenham a idealizado. Ele é identificável nos trabalhos produzidos em: dupla, trio, grupo. Quando um conjunto de pessoas trabalham em função de uma mesma causa. Existem muitas pessoas que se sentem mais confortáveis escrevendo textos em grupo que individualmente, por exemplo. E isso ancora-se muito no que a ciência pedagógica irá entender como tipologia da aprendizagem. Em conjunto ou individualmente, uma obra autoral atribui a algumas pessoas, direitos definidos, pela legislação brasileira, como: DIREITO AUTORAL.

Diferentes das pessoas que produzem, criam ou mesmo trabalham conjuntamente em função da construção de algo novo, está ou estão as pessoas que auxiliam no processo de construção. As últimas recebem o nome de: auxiliares, instrutoras, orientadoras. Como os termos em si, já comunicam, não existe nessas a posição das primeiras. Quem auxilia o processo construtivo de algo idealizado, não tem direitos sobre a obra. A orientação, portanto, pode se dá na dimensão direta ou indireta, na indicação de algo que possa colaborar com a produção. Podem ser orientadores em uma produção: pessoas, leituras, lugares. Orientador é tudo aquilo que nos direciona a seguir um caminho, uma direção. Recordo que falei muitas vezes em espaços públicos e em textos, que os meus orientadores foram os livros que li. Mas não foram eles apenas. Foram os lugares que frequentei durante a vida, as pessoas com as quais dialoguei em ambientes formais e informais. Fui orientada por tudo o que me construiu pessoa e docente no decorrer da vida. A orientação é tudo o que nos conduz. Lembro que na infância vivemos muito isso. Pode ser o exemplo mais cabível. Agora, nesse texto, Aurélio foi um orientador, por exemplo. As pressuposições em torno das palavras, precisam ser permanentes. Sem elas nos perdemos nos espaços. Nos perdemos de nós. Nos distanciamos do que produzimos. Assim, finalizo esse diálogo esperando ter colaborado, de algum modo, com os que ingressam pouco a pouco no universo AUTORAL.

Sobre o autor

Website | + posts

É Pedagoga e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver por aqui, reflexões, majoritariamente autobiográficas, sobre o conceito de democracia na sociedade capitalista. Escreve, esporadicamente, poesias e crônicas.


Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Últimas publicações