Erika Theodoro: uma atriz que se redescobriu na pintura em tela
O ser humano possui uma relação muito íntima com a arte, seja no consumo ou de forma ativa, trabalhando com a produção e criação de peças na pintura, na música, além de esculturas, dança, cinema, livros e tantas outras possibilidades.
De forma resumida, a arte nada mais é que a expressão de emoções, do registro cultural e histórico por meio de valores estéticos como equilíbrio, harmonia, um elo com o divino. Parece simples na teoria, mas, como diz um famoso livro do saudoso jornalista Joelmir Beting, na prática a teoria é outra.
O artista se percebe e se descobre o tempo todo, passa por processos internos, é inquieto, está sempre buscando novas possibilidades de expressão. Parece uma loucura para quem olha de fora, mas quem está dentro desse aparente caos já está acostumado, pois essa é uma vivência cotidiana e diuturna.
Para falar um pouco sobre seu processo artístico e criativo e sobre um processo de autopercepção recente na carreira, eu conversei com Erika Theodoro, criadora do Theodoro.Art, um ateliê de pintura que cria quadros personalizados incríveis e também quadros fine art.
Nascida em 1980 na cidade de São Paulo, Erika é graduada em Artes Cênicas no INDAC e pós-graduada em Artes na Educação. Ela atua como atriz, diretora e professora de teatro há mais de 28 anos em cursos, oficinas, escolas, projetos sociais e culturais.
Aí, você, leitor, me pergunta: como uma atriz foi parar na pintura? A explicação, nas palavras da própria artista, é que tudo foi parte de um processo de autoconhecimento e conta que a pintura em tela está presente em sua vida desde a infância, mas foi abandonado por um tempo pois ela quis se dedicar ao teatro. Após anos atuando e dando vida a outros personagens, ela retomou um antigo projeto e se redescobriu.
Confira a entrevista:
Quando você começou a perceber o talento para a pintura?
Me apaixonei pela pintura quando eu era criança, por volta dos 8-10 anos de idade, por aí. Em uma aula de arte na escola, fomos para o Horto Florestal [de Rio Claro, no interior de São Paulo] para pintar a paisagem. Escolhi uma árvore que ficava de frente para um lago. Era outono, lembro como se fosse hoje, os quatros tons da árvore me chamaram a atenção, o desafio de fazer a réplica de algo tão perfeito da natureza me deixou inspirada e desafiada, o que me conectou com algo que acredito que venha ser da minha alma, do meu espírito. Ao terminar, eu disse, que seria Marchand [profissional que presta serviço de agenciamento de um artista ou de um conjunto de artistas, perante o mercado artístico]. Até meus 17 anos, esse era meu objetivo: fazer faculdade de Artes Plásticas e depois Artes Cênicas. Mas, infelizmente, nessa época eu não pintava mais.
Por que você parou de pintar?
Tinha abandonado os pincéis diante das primeiras críticas que apareceram. O mais engraçado que para o teatro, ou música, que também estudei desde criança, toda e qualquer crítica era um desafio. A pintura era algo tão importante pra mim, que meu próprio ego não permitia que aquela sensação que o ato de pintar gerava dentro de mim fosse tocada. Mas, lógico, só tenho consciência disso hoje, aos meus 42 anos de idade. Depois de muitos anos, exatamente com 39 anos de idade, resolvi voltar a pintar. E quando observei o que fiz, me remeteu a mesma sensação que obtive aos 8 anos de idade diante daquele lago. Falei sozinha “Essa sou eu”. Por obra do destino, durante a pandemia comecei a dar aula na Fundação Casa [de Rio Claro], e, para minha surpresa, minha parceira de trabalho foi uma das minhas professoras de Artes da minha infância. E isso foi também um dos gatilhos que me fez voltar à pintura.
Ao perceber esse dom, você se dedicou a algum processo de aprendizagem para adquirir habilidade ou apenas seguiu praticando e avaliando o resultado?
Eu segui praticando e procurando obter informações e conhecimentos com alguns colegas da área de artes plásticas. Uma das coisas que diversas pessoas de lugares diferentes, conhecidos e desconhecidos, me falaram, é que eu tinha uma identidade própria, que isso era uma das coisas mais difíceis de um artista inicial obter. A minha linguagem visual tem identidade e um traço únicos, que são da Erika Theodoro. Isso me deixou mais entusiasmada, porque dentro de mim é claro o que eu quero pintar e representar, não existe desvios. A minha pintura é representação daquilo que eu sou, da minha ancestralidade e espiritualidade. Faz parte da minha trajetória dentro desse universo. Por mais abstrato que qualquer um dos meus quadros possa ser, cada pincelada e as cores que uso vem sempre do mesmo lugar.
Você disse que parou de pintar após receber algumas críticas. Como foi se redescobrir?
Eu me corrompi não por culpa minha ou de alguém, mas pelo próprio processo da vida que me empurrou a fazer outras descobertas no mundo da arte, para que agora eu posso entender a pintora que sou hoje. Retomar ou, melhor, colocar em prática agora diz o quanto estou preparada para não ouvir mais as opiniões alheias e deixar, querendo ou não, as pessoas e essas ideias e, ao mesmo tempo, também [deixar] o registro da minha marca pelo mundo. Talvez a minha arte possa tocar uma alma lá na frente, pode ser inspiração para alguém. Não importa!
GALERIA: Confira algumas das obras de Erika Theodoro
Como é o processo artístico de pintar um quadro personalizado?
Pintar um quadro personalizado é um desafio grande. Eu preciso entender a proposta do cliente e me conectar com o que ele quer, as suas sensações, e fazer com que o meu mundo se conecte ao dele. Assim, eu me redescubro a cada pintura, pois muitas vezes finalizo uma obra e não acredito no resultado da minha própria criação. É incrível! Não imagino que algo tão simples pode se tornar algo tão incrível.
E como surge a inspiração para uma nova obra?
Eu sou muito fotográfica. Às vezes lembro de detalhes imperceptíveis para muitas pessoas. Então, busco inspiração nos detalhes da natureza, nos meus sonhos e nas fotografias que já vi, principalmente em tudo que é referente ao meu povo, a África: a mulher africana, principalmente, a religião, o culto, o mistério e a força. Quando penso, ou falo sobre isso automaticamente, surgem milhões de imagens e vejo o quanto tenho que pintar.
De forma geral, como você caracteriza a sua obra? O que você gosta de retratar?
Meus sonhos dizem pra mim o que eu tenho que pintar. Certo dia, sonhei que estava defendendo uma mulher de abuso de normas machistas, que imperava em uma comunidade africana. O abuso físico e sexual foi tanto que ela faleceu. Eu carregava sua foto no bolso, tentando mostrar e dialogar com a comunidade mostrando o que suas ações causavam. Dias depois, tive que parar de pintar, porque na minha mente só vinha ela, e no meu peito sentia aquela dor. Tive que desenhar a sua beleza, que escondia uma profunda dor.
Tem algum elemento que você busca sempre colocar nas suas pinturas?
Uma coisa importante que utilizo no processo são as cores, gosto de representar a tristeza, a dor e a alegria com cores vivas, porque a natureza é viva. As cores dão movimento e te provoca a ver o que é ruim com outros olhos. Sabe o velho ditado de “ver o lado bom nos acontecimentos ruins” e o “Em tudo daí graças” e etc.? (risos) É exatamente isso: colocar esses velhos ditados em ações, através da pintura que possamos aprender a enxergar além.
Você, além de pintar, também atua. Como nasceu esse interesse pela expressão artística?
Eu costumo dizer que não nasceu, já é meu. Foi uma questão só de assumir um dos lados daquilo que eu sou. Amo atuar, já realizei muitos trabalhos, gostaria de ter mais oportunidades, mas o sistema artístico é cruel. As pessoas são cruéis, existe um falso espaço na arte brasileira que pouco é preenchido. Principalmente para os artistas negros. Teve uma época que não queria mais atuar. Tinha cansado de ser a preta escrava, empregada ou a puta. Ou, então, fazer uma pontinha aqui e outra ali.
Como foi isso para você?
Esse basta geralmente acontece quando você começa a reconhecer o seu potencial e aí não é tudo que você aceita mais. E pintar é um grande ‘foda-se’, você pode fazer o quiser até queimar meu quadro. Mas eu finalizei, eu tive um começo, meio e fim do processo artístico. Por isso que através da minha pintura represento muito a mulher negra, a cultura negra. Eles são meu carro chefe, eles são protagonistas da minha história. E ninguém pode tirar isso de mim.
Qual a sua percepção sobre a arte e a pintura hoje no Brasil?
Eita, país incrível no mundo das artes! Adoro os desconhecidos, as diversas manifestações das mesmas coisas, das cores, representando algo comum. Mas, o povo brasileiro está longe de amar a arte como deveria. O povo brasileiro não aceita o tamanho da diversidade que cabe em um único ser humano. Ele entra em conflito consigo mesmo tentando enquadrar um molde que não é seu, não é do povo brasileiro e assim ele se perde, se matam, se ofendem e se agridem de diversas maneiras. E tudo começa pela educação, é necessário contar a real, a verdadeira história, a importância que a cultura tem no mundo, na sociedade e na sua própria vida.
E como fazer isso?
Converse com as pessoas. Elas não sabem que cultura interfere no seu comportamento, nas suas decisões e até mesmo no modo como se vestem. É bizarro quando eu escuto: ‘vou assistir essa peça pra que? Não gosto de arte, não serve pra nada na minha vida? Etc… ‘. Isso mostra o quanto as pessoas deixam de se olhar, olhar o meio em que vive, a sociedade e o mundo. Todo mundo quer estar no mundo a passeio, se transformar em um humano crítico e pensador dá trabalho e já basta ter que trabalhar pra comer. Porém, esquecem que muitas partes do mundo, por exemplo o Nordeste Brasileiro, está vivo graças à cultura que sustenta, que dá o que come para o seu povo. Mas, passo a passo o povo brasileiro vem abrindo seus olhos.
Erika, para terminarmos, e em uma clara referência ao bate bola do programa da Marília Gabriela: um artista.
Van Gogh.
Por quê?
Por causa da harmonia entre as cores, as pinceladas que provocam movimento nas imagens, a representação da realidade que faz o espectador buscar algo emocional, despertando diversos sentimentos. Mas, posso citar mais um?
Por favor! O espaço é seu!
No final do ano passado, eu descobri um artista incrível chamado Sindre Mendes da Galeria Rizoma. O que me chamou a atenção nas suas obras foram os detalhes minuciosos. Eles trazem um movimento emocional e uma força incríveis. As obras deles fixam em sua mente e o olhar de cada imagem, fala com a gente. Ele representa perfeitamente as forças dos Orixás em suas criações. E tem como isso não ser uma inspiração? Quando lembro das suas obras, eu digo a mim mesma: ‘é nos pequenos detalhes que existe a maior riqueza e força humana’.
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Sobre o autor
Cidadão do mundo, jornalista por formação, comunicador por vocação, apaixonado por música, hardnews e ironia, fotógrafo por hobby, escritor e inquieto por criação. Autor de "Coisas da Vida", "O Diário de Arthur Ferraù", "Águas de Março", "Coisas da Vida" e da série "Labirintos do Coração".