Diálogos com “UMA DÉCADA DE PROSA”: quem disse que não posso resenhar o MEU PRÓPRIO LIVRO?

Nesse texto apresento o meu livro por meio de um olhar externo. Do olhar de alguém que o leu, após um tempo de distanciamento. Escolho como primeira fotografia para essa publicação, a estrutura que utilizei no cartaz de divulgação e convite para o primeiro lançamento, feito ainda em 2021.

Autora: Hebelyanne Pimentel da Silva.

SILVA, Hebelyanne Pimentel da. Uma década de PROSA: impressos e impressões da professora e jornalista Maria Mariá (1953-1959). 1. ed. Fortaleza: EdUECE, 2021. 289 p. ISBN: 978-65-86445-71-8.

A obraUma década de prosa: impressos e impressões da professora e jornalista Maria Mariá (1953-1959), decorre de uma pesquisa realizada autonomamente pela estudante Hebelyanne Pimentel da Silva, desde os anos iniciais de Licenciatura Plena em Pedagogia, pela Universidade Federal de Alagoas. A autora analisa o que conceituou de “marginalização do estado de humanidade”, ao construir a narrativa historiográfica de um fragmento da trajetória da professora e jornalista alagoana Maria Mariá. A vida da personagem e da pesquisadora, interagem pela origem comum e pela posição contra hegemônica, por ambas adotada, como mulheres nascidas em um lugar pouco priorizado nas políticas públicas brasileiras: União dos Palmares. Lugar, que para a autora, produz mulheres impedidas de ser, destinando-as ao casamento e a maternidade. O feminino do livro, mantém a formação como elemento favorável à liberdade. Uma liberdade que deve ocupar a dimensão da consciência. Liberdade, em muitos momentos roubada pela atribuição de um destino estagnado ao gênero.

 

Já em dedicatória, torna-se clara a posição político educacional de quem escreve, com o apelo ao direito que todas as pessoas devem ter, de registrar os seus pensamentos e ideias: “Às mulheres, aos estudantes aos sábios. Aos que tiveram de si roubado, o direito de poder registrar as suas (pa)lavras” (p. 7). O registro escrito parece ser, para a autora, uma forma de resistência. Com esses pressupostos, o texto diz comprometer-se com a análise das ideias educacionais da professora, atentando especificamente a década de 1950, lançando a hipótese de que os fragmentos jornalísticos compõem uma escola de prosa, o que justifica o título. Do início ao final, a linguagem e a formulação da escrita, remetem a uma prosa, mesmo com existência de alguns problemas de grafia. O uso dos verbos em pretérito mais-que-perfeito, também parece ser inapropriado em alguns momentos. Entre os pontos que chamam a atenção leitora, podem ser destacados: o nível de formação da escritora, ainda concluinte na primeira graduação, o ineditismo da ideia e da forma de investigação, a maneira como a obra está organizada, a ênfase na condição das professoras primárias e secundárias com vidas controladas e subalternizadas pelo Estado, debate pouco comum na historiografia biográfica de professoras.

            Organizada, na primeira parte, em três capítulos, a narrativa intitula cada momento como: “Fragmentos de uma trajetória: entre achados e perdidos” (p. 33-59), “Entre origens e redes de sociabilidade: alfarrábios de uma trajetória” (p. 60-91), “Magistério e jornalismo na trajetória de Maria Mariá: indícios de uma escola de prosas” (p. 92-122). Estes são iniciados com uma epígrafe criada especificamente para a abordagem do tema proposto, e que são retomadas nas reflexões finais das subdivisões. Na segunda parte, existe uma transcrição de 57 textos inéditos da professora personagem, com marcas do tempo e condições de escrita. Nesta última, destacam-se as notas informativas que dizem da trajetória de pesquisa ao tempo que informam as transformações progressivas do jornal adotado como fonte. Também se percebe o cuidado com a apresentação dos textos na ordem de publicação, que favorece o acompanhamento da vida dá personagem durante toda a década. Não havendo a imagem dos jornais, para a observação de sua condição material, existe em notas, a apresentação de elementos que podem colaborar com a percepção da maneira como esses impressos encontravam-se. A cronologia, posicionada entre as páginas 271 e 275, funcionam como um pequeno mapa posicional, anterior as referências e posterior às prosas. O e-book identifica-se como 123º volume da Coleção Práticas Educativas, estando entre produções de outros pesquisadores e pesquisadoras atuantes no Nordeste.

            No primeiro capítulo, é narrada a maneira como se deu a trajetória de pesquisa sobre escritos de mulheres professoras, até chegar as fontes que dão razão de existência a obra. Pensa-se como os estudos de e sobre mulheres, na perspectiva de resgate as vidas comuns, foram sendo propagados no ambiente acadêmico. Associando as ideias femininas aos ideais do indiciarismo e da micro-história proposta por Carlo Ginzburg, com suas relações e divergências. Um ponto que une as pesquisas é o olhar direcionado aos humanos, com suas particularidades, e o uso de fontes, por muito tempo desconsideradas pela historiografia tradicional: jornais, arquivos policiais, cartas, livros de culinária, manuais pedagógicos, atas escolares, escritos sobre moda, literaturas. Arlette Farge e Michelle Perrot o fizeram, mantendo escrita generalizante. Falaram de mulheres coletivas. A micro-história italiana de Ginzburg inovou quando disse do particular para compreender do universal, e por sua proposta, inspirou à escrita resenhada. Existe a intenção de dizer como, por meio de uma busca por professoras atuantes em alagoas, foi possível chegar nas produções de Maria Mariá.

            No segundo capítulo, conhecemos melhor a personagem protagonista. Maria Mariá de Castro Sarmento, nasceu em 17 de junho de 1917, na cidade de União dos Palmares, e ao mesmo lugar, manteve-se por toda a vida vinculada. A sua trajetória foi marcada por muitos acontecimentos decorrentes de um comportamento atípico, fenômenos que a tornaram lendária no discurso popular. O que fez nos anos correspondentes entre 1953 e 1959, mostra os seus projetos e as suas contradições. Iniciou a vida professoral na década de 1940, após o curso Normal, e manteve projetos que na localidade foram compreendidos como significativos, mas a sua visibilidade nacional e internacional se deu a partir dos escritos prosaicos publicados no Jornal de Alagoas. Sobretudo pelas denúncias e reinvindicações feitas.

            Como crônicas, anúncios e notícias, os fragmentos foram marcantes porque apresentaram as condições de vida das pessoas comuns. Sobretudo, as que eram profundamente afetadas pela má distribuição das riquezas no país: pessoas pobres. Com essa ótica de análise, a educadora apresentou à Educação Pública: prédios escolares, condição professoral e estudantil, membros da intelectualidade épica. As publicações transparecem um olhar indignado. Os feitos incomuns, levaram-na a ser admirada por parcela da sociedade e repudiada por outra. Foi definida como udenista e comunista, pelas denúncias proferidas, e manteve uma rede de sociabilidade com jornalistas alagoanos e de outras localidades. Tudo levou a definição de seus feitos como decorrentes de um pensamento intelectual. Uma intelectual marginal, pelo que é destacado. A sua marginalidade não se efetiva pela classe, mas pelo gênero, pela localidade de origem e pela escolha comportamental. A inquietude e rebeldia levaram-na ao exílio, fatalidade destacada na década. Para a discussão desse momento, é estabelecido diálogo entre os diferentes conceitos de intelectualidade postos por: Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre, Jean-François Sirinelli. Entende-se a intelectualidade como um fenômeno que leva os sujeitos a superação do que é chamado, no livro, de comportamento comum. As concepções dos autores, é dialogada com a análise feita pela filósofa alemã, Hannah Arendt, ao nazista Adolf Eichmann. Tudo com o objetivo de mostrar que as ações que superam o tempo e localidade, simbolizam, no decorrer da história, visualizações de uma sociedade capaz de ultrapassar problemas estruturais. As pessoas que se adaptaram aos contextos de injustiça, foram comparáveis a Eichmann: banalizadoras de um mal justificado pela adesão aos interesses do Estado. Mal permanente no Apartheid, no Nazismo, na Inquisição e nos vários regimes autoritários. No texto, os intelectuais seriam pessoas contrárias a hegemônicas formas de maldade.

            No último capítulo, é explorada a escola de prosas que, por sua vez, caracteriza a docente como deslocada entre outras mulheres da mesma localidade e tempo. Desvelando um estranhamento à cultura. Na escola formulada na Página dos Municípios do Jornal de Alagoas, são sugeridos três instrumentos pedagógicos: jornais escolares, os livros, por meio da fundação de bibliotecas públicas, e a arte literária. Faz-se um comparativo das ideias metodológicas de Mariá, com as de outras mulheres vinculadas aos movimentos escolanovistas de 1932 e 1959. Percebe-se que a professora parece mais compactuante com o último manifesto. Sobretudo pelo culto que fez, durante a década, à cultura popular. Existe na mestra, uma percepção crítica a condição docente, o que não é notado durante a década de 1930, pela ênfase na condição estudantil, necessária. A Escola Normal é colocada, pela autora, como influente na formulação da criticidade de Mariá, com sua valorização à erudição. O advento do socialismo, nos anos de 1950, parecem justificar o cuidado com a dimensão de classe, adotado pela protagonista do livro e pelos assinantes do Manifesto dos Educadores. São mencionados escritos de alguns acadêmicos renomados: Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Antonio Candido. Todos críticos as hierarquias sociais. Visualizadores dos privilégios e misérias. Define-se, por meio do debate final, o sentido de Escola do texto. Também se torna notável, o olhar contraposto ao escolanovismo, com suas formas de precarização do trabalho docente. A partir do conceito de configuração, dado por Norbert Elias, é pensada a forma de organização processual dos comportamentos, enfatizando no que era possível para o recorte temporal definido, e explicitando às interdependências culturais, delimitadoras das particularidades.

            De modo geral, percebe-se na obra uma tentativa de registro às reflexões iniciais provocadas por uma pesquisa documental ainda em desenvolvimento. Cada capítulo é inspirado em um texto literário, sequencialmente: A hora da Estrela de Clarice Lispector; Ensaios sobre a cegueira de José Saramago; Metamorfose de Franz Kafka. Literaturas que levam a pensar sobre margens humanas. Entre uma jovem órfã alagoana que exerce a função de datilógrafa no Rio de Janeiro, um caixeiro viajante que se torna inútil a família e a sociedade após metamorfosear-se em inseto monstruoso, e pessoas postas em manicômio após uma epidemia de cegueira, existe a descrição da realidade comum em alguns contextos. Realidade de quem ocupa o subterrâneo da pirâmide econômica. A ficção que diz das (in)visibilidades. É isso que faz a autora aproximar a Literatura da História. Conhecimentos de áreas que, articuladas à Sociologia e Antropologia, permitem atenção do olhar, em um estudo que percebe as particulares ideias de uma professora de origem interiorana, na universal forma de ser da docência. Desvela a subalternidade dos ambientes afastados dos grandes centros, apresentando às fragilidades da democracia brasileira. Pela escrita acadêmica, o livro é indicado, principalmente para pesquisadoras e pesquisadores atentos a história das mulheres, estudos de gênero, história intelectual e dos intelectuais, e estudos autobiográficos. Mas também pode e deve ser lido por aqueles que se interessam pela história da Educação de Alagoas, independente do nível de formação.

 

 

 

Sobre o autor

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É Pedagoga e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver por aqui, reflexões, majoritariamente autobiográficas, sobre o conceito de democracia na sociedade capitalista. Escreve, esporadicamente, poesias e crônicas.


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