O viver literário de Zila Mamede
Compartilho a resenha de um dos livros que contatei recentemente. É uma biografia que aproxima-se do que tenho estudado, por tratar de uma trajetória feminina, ao tempo que se diferencia, ao dizer da personagem em si mesma. Nesse autor, não existe a intenção de problematizar: relações sociais, projetos educacionais ou a construção de ideias. Ele focaliza atenção nos fatos evidentes na vida pessoal e profissional de Zila Mamede. É, portanto, um texto sobre as práticas e as representações dessas práticas, por meio de alguém que escreve olhando de fora para uma identidade de gênero.
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MACHADO, C. J. S. ZILA MAMEDE: TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS E EDUCATIVAS. CAMPINA GRANDE: EDITORA UEPB, 2010, 133p.
Autora da Resenha: Hebelyanne Pimentel da Silva.
As palavras deixadas em livros por algumas mulheres brasileiras, parecem ter as definido como atuantes em duas áreas: educação e literatura. Mesmo quando não mantiveram o magistério como ofício, educaram a partir de projetos. Em poesias, versos ou crônicas, manifestaram as diferentes maneiras de olhar para a sociedade, em seus tempos e espaços específicos. Zila Mamede direcionou atenção, aos acontecimentos cotidianos. Entre outros temas, ao mar que perpassa a cidade de Natal, na qual fizera-se escritora, pode ser colocado como mais mencionado. Recebeu, uma formação religiosa, mas que a possibilitou exercer o ofício de bibliotecária e escritora. Foi sobre o vínculo existente entre o que fez nas duas funções, que se debruçou Charliton Machado. Autor que iniciou a vida escrituraria pensando sobre A dimensão da palavra. Obra que o fez conhecido por Maria José Mamede Galvão, irmã de Zila e apresentadora desse texto: “Nas linhas e entrelinhas, estavam explícitas as falas de mulheres de Nova Palmeira-PB, todas elas descendentes dos mesmos avós, e, onde, orgulhosamente, me insiro” (p. 17).
A pesquisa resultante no texto resenhado, foi desenvolvida durante os anos de 2008 e 2009, quando o autor estava realizando estágio pós-doutoral, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob supervisão do professor pesquisador José Luís Safelice, prefaciador da obra. O projeto Educação e Educadoras na Paraíba do século XX, completava 5 anos de existência e passava a ser financiado pelo CNPq a partir de 2009. A proposta de livro nasceu do desejo de continuar percebendo os entrelaçamentos das diferentes trajetórias de moças paraibanas, muitas vezes pouco notadas pela historiografia global. Ao escolher o método biográfico, pela perspectiva de Giovani Lévi, o trabalho expõe adesão ao campo da Nova História, mantendo a cultura como elemento considerável à análise dos fenômenos, e centrando maior preocupação no indivíduo que na sociedade que o rodeia. O recorte temporal correspondente entre os anos de 1928 e 1985, escolhido, indica transformações sociais importantes no universo literário e educacional: momento de expansão do número de bibliotecas públicas no país e de modernização das formas de arte. A personagem protagonista, é apontada como pertencente à geração 1945, de poetas.
O trabalho partiu de três indagações: Quais as efetivas contribuições educacionais e literárias da escritora Zila da Costa Mamede ao processo de expansão das bibliotecas no Brasil e, particularmente, no Rio Grande do Norte? De que forma sua atuação profissional influiu no universo da educação e da leitura regional pós-1945? Qual o impacto da sua obra para o campo da biblioteconomia, da educação e da literatura nacional? As tentativas de resposta foram sento feitas no movimento escriturário organizado também em três momentos: “Primeiro Estudo – Zila da Costa Mamede: caminhos de uma trajetória literária e educativa”; “Segundo Estudo – A família em palavras: histórias de vida nas práticas de escrita de Zila da Costa Mamede”; “Terceiro Estudo – Por que Zila da Costa Mamede?”. Os capítulos podem ser definidos como individualidades coletivas, pela característica, podem ser lidos individualmente sem que por isso percam a possibilidade de tornarem-se compreendidos. Todos são iniciados com um breve resumo e referenciados individualmente.
No construto foram utilizadas múltiplas fontes, entre as quais valorizou-se, com maior frequência, as caracterizadas como “escritas de si”. Entre os acervos consultados, foram mencionados: “Biblioteca Central Zila da Costa Mamede, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal); Biblioteca Câmara Cascudo, da Fundação José Augusto (Natal); Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa); Biblioteca Central da UNICAMP (Campinas), Biblioteca da Faculdade de Educação, UNICAMP (Campinas)” (p. 26). O estudo, em sua completude, ancorou-se nas categorias de análise sugeridas por: Vavy Pacheco Borges e Giovani Lévi. E nos conceitos elaborados por: Norberte Elias, Roger Chartier e Clifford Geertz. Fazendo sincrônica observação ao passado, sob ótica formulada no que até então era presente.
Já no primeiro capítulo, Zila Mamede tem trajetória literária e educativa, dispostas. São narrados os acontecimentos mais importantes da vida da personagem, em caminho que vai da infância à idade adulta, em análise a sua transição da Paraíba ao Rio Grande do Norte, apresentando-se como ela vivenciou as movimentações educacionais brasileiras. Nascida em 15 de novembro de 1928, membro de uma família pobre, residente do sertão paraíbano, especificamente da cidade de Nova Palmeira (ambiente rural), filha da costureira Elidia Bezerra Mamede e de Josafá Gomes da Costa Mamede. O pai, como provedor do lar, exerceu diferentes funções: “[…] mascate, barbeiro, marceneiro, sapateiro” (p. 40). A personagem manteve infância marcada pelo desenvolvimento de funções adultas, especificamente as comuns entre mulheres da época: domesticidade. Uma fotografia da casa na qual passou parte desse momento inicial de vida, é colocada no início da produção. Memórias do período aparecem no Soneto triste para a minha infância, publicado em 1953. Evidencia-se em sua educação, a influência católica, comum entre o feminino do período. A família mudou-se para o Rio Grande do Norte, em 1935, quando ela completava 7 anos de idade, passando a residir na cidade de Currais Novos, lugar destacado pelo bom desenvolvimento econômico, já caracterizado pelos traços de modernidade. Ambiente oportuno para Josafá Mamede. O último passou a trabalhar como mecânico, e tornou mais confortável a vida familiar. A mudança foi relatada por Zila na poesia Navegos: “Em Currais Novos eu me tornei uma sertaneja incurável, tenho verdadeira paixão pela cidade e tudo o que ela representa” (MAMEDE, p. 1 apud MACHADO, 2010, p. 46). Mas foi em Natal, que a sua carreira como literata e bibliotecária se consolidou. Entre os anos de 1940 e 1950 ela se tornava conhecida como escritora da vida cotidiana, a partir dos 21 anos de idade, expressando-se por meio de contos, poemas e crônicas, nos principais jornais da cidade de Natal. Em 1953 a autora publicou o seu primeiro livro de poesias. Obra que definiu como certidão de poeta. Embora tenha alimentado o desejo de especializar-se em literatura, decidiu, em atendimento aos conselhos familiares, cursar o básico e técnico em contabilidade, o que possibilitou ingresso no mercado de trabalho. “Em 1958 publicou o seu segundo livro: Salinas, e, no ano seguinte, em 1959, o terceiro, O arado, prefaciado pelo amigo folclorista Luiz da Câmara Cascudo” (p. 63).
Ao longo da carreira, trocou correspondências com renomados escritores brasileiros: “Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Osman Lins, César Leal, Câmara Cascudo, Edson Nery da Fonseca, Maria Alice Barroso, entre outros” (p. 65). Com a ajuda de Manuel Bandeira, conseguiu uma bolsa de estudos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, bacharelando-se em Biblioteconomia. Após 1959, “[…] passou a se dedicar, efetivamente, às atividades de bibliotecária e bibliógrafa, realizando cursos intensivos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e na Universidade de Brasília (UNB)” (p. 63). E em 1961, cursou biblioteconomia em Siracuse University, nos Estados Unidos, enfatizado na “[…] seleção, preparação e circulação de publicações latino-americanas e, ainda, na sua classificação e catalogação” (p. 63). Finalizou a carreira na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como diretora da biblioteca central, aposentando-se em 1980.
A escrita interliga-se ao contexto familiar, isso parece justificar a necessidade de abordar a relação existente entre a história de vida da personagem e as suas produções, no segundo capítulo do livro. O autor inicia explicando a relação existente entre família e sociedade na construção identitaria dos sujeitos. Menciona a interferência do avô de Zila, em sua infância, e mostra como a relação cultivada, durante a adolescência, com o tio padrinho, médico Francisco Bezerra, foi significativa na constituição de sua sensibilidade leitora e escriturária. Os reflexos das relações parentais, existentes em alguns dos textos, foram comentados por Carlos Drummond de Andrade, em correspondência, como positivos. Outro elemento comentado por Drummond, em cartas trocadas com Zila, foi a morte. Em específico, são dispostas as cartas sensíveis ao falecimento da mãe e do sobrinho da literata. Eventos que se mostraram difíceis à poetisa. Charliton Machado faz uma exploração breve à categoria família, remetendo a simbologia da casa, para mostrar que as duas participam da construção das vidas coletivas e individuais. O capítulo de caráter mais conceitual, evidencia a dialética existente entre público e privado, como práticas culturais.
No terceiro e último momento do livro, são retomados os principais fatos marcantes na carreira de Zila como escritora e influenciadora da leitura no país. Para tanto, são focalizados os projetos de fundação de bibliotecas como elementos educacionais. Entre os lugares aos quais manteve-se vinculada, quando bibliotecária, são destacados: O Instituto Nacional do Livro (INL), Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Departamento de Recursos Humanos da SUDENE, Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos. No primeiro exerceu a função de coordenadora do livro literário, entre os anos de 1972 e 1974, e sobre a experiência, afirmava: “[…] vivi e convivi com a literatura brasileira, com os autores, com os editores, com os distribuidores e pude aprender de perto o que significa a luta literária no Brasil, no sentido de produção e consumo” (MAMEDE, 1975 apud MACHADO, 2010, p. 114). Entre 1974 e 1980, foi funcionária federal da UFRN, cargo que a torna lembrada pelo estado, até a atualidade. O mar que marcou parte da sua vida, foi o principal responsável por sua morte: foi por ele levada em 1985, durante um momento de laser. A pesquisa que fez sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, foi publicada postumamente, e considerada, por alguns críticos, como uma das mais importantes do país sobre o escritor. Em homenagem póstuma, o literato dedicou todo um conjunto de poemas pernambucanos a Zila. Como legado ela deixou na memória dos que com ela conviveram, a ideia de que a formação é um bem capaz de transformar trajetórias. O depoimento dado por Sanderson Negreiros, em 2008, ao jornal Tribuna do Norte, é um exemplo da imagem por ela deixada para a juventude épica. A leitura foi, para a poetisa, um instrumento de refúgio em tempos angustiantes, como ocorreu ao trabalhar como contadora, e um meio profícuo para o alcance de uma certa autonomia intelectual. Desvendar entrelaçamentos dessa vida, destacando contribuições educacionais, foi o motivo da escolha de Machado.
Embora, como já foi dito, os capítulos sejam compreensíveis individualmente, o último apresenta caráter conclusivo, dada a ausência de um tópico com tal intenção. Após finalização do texto, são dispostas, em anexos: capas de livros de autoria da personagem e dos que sobre ela escreveram até 2010, fotografias e fragmentos jornalísticos. Em completude, a obra mantém peculiar estrutura organizacional, com narrativa atenta as configurações individuais de uma mulher atuante no Rio Grande do Norte. Pode ser analisada como leitura importante aos que desejam compreender, de modo mais profundo, a História de uma pessoa, com suas tramas e especificidades, em suas relações com outros e com espaços específicos. Considero que a História de mulheres precisa de um olhar vindo de dentro, portanto, das próprias mulheres. O olhar de Machado é externo e mostra como ainda temos poucas acadêmicas estudando o feminino no país. Somos estudadas por quem pouco conhece as especificidades de nossas vivencias na sociedade brasileira. O autor coloca-se como alguém que visibiliza uma pessoa esquecida, com a intenção de fazer justiça histórica. Espero que faça-se justiça na rotina também.
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Sobre o autor
É Pedagoga, Mestra em Educação e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver, por meio desta coluna, reflexões majoritariamente autobiográficas sobre as condições de vida das pessoas de origem interiorana, especificamente do interior de Alagoas. Escreve, comumente, crônicas e artigos de opinião, mas também utiliza-se da linguagem poética, quando pertinente à temática destacada.