A cidadania em Kafka

É um texto para fazer lembrar. E pensar.

Existem obras que nos marcam eterna e profundamente. Elas sobrevivem as transformações que, em nós, são provocadas pelo tempo. A cada contato parecem trazer um sentimento novo. Uma epifania. É assim que percebo a conhecida novela “A Metamorfose”, escrita por Franz Kafka em 20 dias, durante o ano de 1912. Colecionei algumas edições da obra para analisar as diferentes traduções. Por vezes me via recordando da primeira cena:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (p. 7).

 

Mas o que seria esse inseto monstruoso? Me perguntei algumas vezes. Modesto Carone, recordava que entre as cartas que Kafka trocava com a noiva, ao referir-se ao texto, ele o definia como repulsivo. Uma característica que parecia ser percebida, comumente, pelos amigos para os quais lia:

“[…] a leitura da primeira parte, que teve lugar em Praga no dia 24 de dezembro de 1912, provocou gargalhadas graças ao grotesco frio que a perpassa” (p. 90).

 

A riqueza dos detalhes na escrita do autor, permitem o ingresso nos sentimentos dos personagens, sobretudo de Gregor Samsa, a partir de uma narração fria e indiferente. A indiferença ao absurdo, como recordado por Modesto Carone:

 

“[…] anotação obsessiva e naturalista do detalhe cumpre, em Kafka, a tarefa de cercar a fantasmagoria, conferindo-lhe a credibilidade do real, o que dá ao insólito a nítida sensação de déjà vu” (p. 92).

 

A metáfora do inseto, fez muitos leitores perderem-se na imaginação, buscando associar o característico atribuído a Gregor, aos que se encontram presentes nos variados invertebrados. Mas será que o tipo de inseto interfere no sentido que se atribui a tal estado, na narrativa?

Gregor Samsa, que, por toda a vida, fez-se o principal provedor da família, acordou-se em uma manhã qualquer, sem condições de exercer a profissão para a qual dedicava-se há longa data. Entre as memórias e lamúrias, o personagem evidenciava o modo como o trabalho havia ocupado lugar central em sua trajetória, o impedindo, em muitos momentos, de ser apenas uma pessoa que: dorme bem, alimenta-se regularmente, compartilha eventos felizes com a família. Ao acordar metamorfoseado em algo que o impedia de trabalhar, o personagem parecia tornar-se inútil para si e para quem dele dependia financeiramente. Tornava-se inútil a sociedade.

Será que a inutilidade sobre a qual discorre a obra, é sentida apenas por alguém que, em realidade distópica, ganha características de um inseto ou de qualquer outro bicho asqueroso? Ou será que o inseto é a metáfora mais apropriada para ilustrar todas as formas de ser que se tornam inutilizáveis em sociedades que mercantilizam as vidas e os corpos? Quando leio “A metamorfose”, em dias atuais, penso sobre como os agentes sociais são reféns dos bens materiais, e sobre como a existência ou inexistência desses bens, interfere no modo como as relações humanas se estabelecem, seja em macro, seja em micro escala. O modo como a família de Gregor passou a trata-lo após a metamorfose, e a maneira como essa mesma família descreve a utilidade a ser atribuída a irmã desse protagonista, quando esta jovem ingressa em idade permissível ao trabalho, parece desvelar o característico comum da sociedade de classes. E do modo como essa sociedade interage com o exercício da cidadania. A frieza adotada pelo narrador, é semelhante a frieza que se expressa quando se olha com naturalidade ao absurdo. A trama me parece desvelar as desumanas formas de ser, em humanos, e as humanas e sensíveis expressões de um inseto dito asqueroso.

 

Referência à edição citada:

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução e prefácio de Modesto Carone. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Sobre o autor

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É Pedagoga, Mestra em Educação e autora da obra "Uma década de PROSA". Busca desenvolver, por meio desta coluna, reflexões majoritariamente autobiográficas sobre as condições de vida das pessoas de origem interiorana, especificamente do interior de Alagoas. Escreve, comumente, crônicas e artigos de opinião, mas também utiliza-se da linguagem poética, quando pertinente à temática destacada.


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