A literatura e suas funções

As funções da literatura não podem ser medidas sob a lente da aplicabilidade imediata, mas da absorção das infinitas experiências possíveis

Recentemente me vi quase que interrogado a respeito dos reais valores da literatura. Acho até engraçado que pessoas sem a menor noção do que seja a tradição literária queiram fazer questionamentos tão incisivos. Não sou nenhum profundo conhecedor do tema, tenho apenas um interesse pessoal, é bom que isso fique claro. No entanto, qualquer pessoa que demonstre simpatia por esse tipo de arte é chamada a depor no tribunal das atividades pragmáticas.

O argumento mais comum – e foi exatamente o que ouvi nesse dia – é que a literatura tem a simples função do entretenimento. Sendo assim, o cinema – e as produções audiovisuais como um todo – atingiu um nível de eficiência muito maior, tendo transformado a literatura numa atividade superada.

É difícil saber por onde começar a contra argumentar diante desse tipo de exposição. A função da literatura não é só entreter, nem a do cinema tampouco. O entretenimento é apenas uma de suas muitas funções. Contamos histórias desde que aprendemos a falar. Essa é a forma mais antiga de criar ligações, ensinar valores, provocar a reflexão, questionar os credos, propor novos olhares.

Quando Victor Hugo publicou, em 1831, seu livro O Corcunda de Notre-Dame[1], sua intenção era quebrar o estigma de que pessoas fisicamente desfiguradas possuíam também a alma desfigurada. O que, afinal, era um recurso da própria literatura. Quando John Hersey publicou a reportagem Hiroshima, nas páginas da revista The New Yorker, em 31 de agosto de 1946, sua intenção era mostrar a história da bomba atômica do ponto de vista dos japoneses. Você pode até argumentar que essa última referência não é literatura, mas jornalismo. Não tiro sua razão, mas estou tratando das funções de se contar uma história, pouco importa se ficcionais ou não.

É por meio desse exercício que vamos formando nossa cosmovisão. A literatura nos permite experienciar vivências que não teríamos oportunidade de outro modo. Não desqualifico nenhuma forma de contar histórias. Todas têm o seu valor e a sua função. A literatura, por sua vez, se diferencia das outras – e não estou dizendo aqui que seja melhor ou pior, apenas diferente – por sua característica solitária. Ela se completa na ligação entre escritor e leitor. E isso acontece no ato solitário da leitura reflexiva.

Sabe quando determinado trecho de um livro fica ecoando em sua cabeça, fazendo você repensar alguns conceitos? A literatura é a ferramenta que nos permite perceber as diferenças existentes entre a imagem que tentamos transmitir à sociedade e aquilo que sabemos de nós mesmos. É claro que esse mesmo efeito pode ser atingido com outras formas de se contar histórias, mas considero a literatura, nessa função específica, a mais poderosa de todas. Quem já leu Crime e Castigo, de Fiódor Dostoievski; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe ou A Metamorfose, de Franz Kafka, sabe do que eu estou falando.

Durante a insônia e a depressão, quando nada parece fazer sentido, é a literatura, com suas realidades condensadas, que me serve de âncora no mundo real.

Se isso não está claro para você, não serei eu a mudar sua visão.

 

José Fagner Alves Santos

[1] O livro foi publicado originalmente com o título “Notre-Dame de Paris”. Só a partir da sua tradução para o inglês, em 1833, o nome do corcunda passou a fazer parte do título.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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