Noite em Caracas abusa do Deus Ex Machina

Livro de estreia de Karina Sainz Borgo tem a narrativa muito fluida, mas o enredo pouco verossímil

Adelaida Falcón está desolada por causa da morte de sua mãe. Numa Venezuela em que as relações se desintegram em meio a tanto violência, caos generalizado e uma estrutura anárquica. As milícias tomaram conta do país.

Após enterrar sua genitora, Adelaida encontra sua casa ocupada por um grupo de mulheres que se beneficia do caos disseminado.

Depois de ser agredida, ela acorda na casa de uma vizinha que dá alguns pontos no ferimento em sua cabeça – decorrentes do confronto anterior. Ao tentar pedir ajuda para Aurora Peralta, uma outra vizinha que morava no apartamento ao lado do seu, Adelaida descobre que Aurora, “a filha da espanhola”[1], está morta.

Documentos encontrados no apartamento podem servir como tábua de salvação, mas será preciso abandonar o seu passado, e com ele sua identidade.

Adelaida Falcón tem o mesmo nome de sua mãe. Vive de serviços prestados a editoras estrangeiras. No entanto, durante aquele período ela mal consegue responder aos e-mails enviados por essas mesmas editoras.

Entendi que a primeira morte acontece na linguagem, nesse ato de arrancar os sujeitos do presente para instalá-los no passado. Transformá-los em ações acabadas. Coisas que começaram e terminaram em um tempo extinto. Aquilo que foi e não será mais. A verdade era esta: minha mãe só existiria quando conjugada de outra forma. Ao enterrá-la, concluía-se minha infância de filha sem filhos. Naquela cidade em estado terminal, tínhamos perdido tudo, inclusive as palavras no tempo presente.”, reflete a narradora.

Durante os ritos fúnebres Adelaida remoe uma frase do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez: “Pertencemos ao lugar onde estão enterrados nossos mortos”. Mas ela não se sente mais pertencente àquele lugar. A autora chegou a dizer que essa é “uma história sobre desenraizamento, sobre sentir-se um estranho entre os seus. Não reconheço mais o lugar onde nasci e ele também não me reconhece”.

Narrado em primeira pessoa, o livro escrito por Karina Sainz Borgo traz reflexões interessantes, mas todos os problemas são resolvidos de modo providencial. Toda as questões importantes são banalizadas. Não há sentimento de culpa ou reflexão significativa sobre o ato de livrar-se do corpo ou de assumir uma identidade outra.

A narradora protagonista rememora seu passado, mas não consegue aprofundar sua identidade.

Os encontros acidentais são muito convenientes e um tanto inverossímeis. O texto, por sua vez, é muito fluido e elegante. Borgo sabe conduzir o leitor, mesmo com uma trama tão insólita. O encadeamento entre um parágrafo e outro faz com que a leitura seja rápida, além de despertar o desejo de continuar.

Lucas Telles, editor responsável pela versão brasileira – em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo –, alega razões comerciais para a mudança do título. A edição foi batizada com a última frase do livro: “Em Caracas, sempre seria noite”.

Publicado originalmente na Espanha – onde a autora vive desde 2006 – pela editora Lumen, o livro teve cinco reimpressões em menos de um mês. Já ganhou versões em 20 países. A edição brasileira foi traduzida pela Lívia Deorsola e editada pela Intrínseca.

Uma bela leitura se o leitor não tiver problemas com os recursos Deus Ex Machina.

Noite em Caracas

Título original: La hija de la Española

Tradução: Lívia Deorsola

Páginas: 240

Gênero: Romance

Escrito por: Karina Sainz Borgo

Editora: Intrínseca

Preço: 31,90

Onde comprar: no site da Amazon

[1] O título original do livro é La hija de la Española

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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