Artigo usina parte 3: Movimentos antiusina e a vigilância do DEOPS
A charge acima, de autoria de Claudius, ironiza ( e denuncia) a truculência da ditadura civil-militar que comandou o Brasil entre 1964 e 1985. Todos eram suspeitos, até que se provasse o contrário. O trocadilho na frase dita pelo garoto vendedor de balas faz referência ao principal órgão de controle e repressão – o DEOPS. Criado em 30 de dezembro de 1924, através da Lei nº 2.034/24, como Delegacia de Ordem Política e Social, posteriormente teve como última denominação, Departamento Estadual de Ordem Política e Social. Sua função era prevenir e reprimir delitos considerados de ordem política e social contra a segurança do Estado.
Durante os dois períodos ditatoriais por que o país passou no século XX — o Estado Novo Varguista (1937-1945) e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) – o DEOPS teve intensa atuação. Para isso, desenvolveu um grande aparato para monitoramento das atividades de pessoas e grupos considerados potencialmente perigosos à ordem vigente. Um dos principais instrumentos utilizados por essa vigilância foi a documentação: relatórios produzidos por informantes, recortes de jornais, fotografias, etc. A central do DEOPS/SP ficava na capital, mas havia “filiais” no interior — no caso da Baixada Santista e Vale do Ribeira, o DOPS/Santos.
As diversas manifestações que passaram a ocorrer em Peruíbe e no litoral paulista, a partir de meados de 1980, motivadas pelo empreendimento atômico a ser instalado na Juréia não passaram despercebidas pelo sistema de vigilância social do governo. Nos arquivos do DOPS/Santos é possível localizar um dossiê intitulado “Movimento contra instalação de Usinas Nucleares”. Na pasta, há uma grande quantidade de recortes de jornais com notícias que relatam a atuação de políticos e entidades na luta antiusina. O sistema de coleta de informações não se limitava àquilo que a imprensa noticiava. Há, também, relatórios elaborados por informantes locais, que narram as mobilizações, os participantes e até mesmo o teor dos discursos.
Dez dias após o Decreto Federal que autorizou a desapropriação das terras na Juréia, o DOPS/Santos solicitou, via telefone, uma relatório sobre a situação em Peruíbe. O informante agiu logo e em 16 de fevereiro escrevia : “Logo após o Decreto (…) formou-se na cidade um movimento de repulsa, com passeatas e corsos de veículos, os quais contavam com momentâneos comícios, com participação de poucas pessoas — a maioria curiosos.” (Vale lembrar, como mostramos no primeiro artigo, que no dia 10 havia ocorrido a passeata com duas mil pessoas!) Em seguida , o relator passa a citar, nominalmente, figuras que considerava os “cabeças” dos protestos. Num subitem denominado “Situação Política”, era apresentado, sempre na visão do informante, o posicionamento do “Executivo Municipal”, do “Legislativo Municipal” e do “Clero” acerca da instalação da Usina. O autor concluía acalmando o governo: “Tal situação já está se arrefecendo, com uns poucos “baderneiros” que fazem “spraymento” nos muros e paredes com alusões contra usina(s)”.
O comício realizado em Iguape no feriado de Corpus Christi também foi “fichado” pelo Dops. A preocupação maior do informante parecia ser os discursos com ataques aos políticos do PDS, o partido do governo. Um deputado estadual da oposição, “ fugindo à finalidade da reunião, desencadeou ataque maciço aos governantes, dizendo que os mesmos deviam estar presentes, numa alusão clara e cristalina às pessoas do Governador do Estado de São Paulo e do Presidente do Republica”.
Em março de 1981, um protesto realizado durante o carnaval em Peruíbe foi relatado ao DOPS/Santos. Segundo o informante, “durante a realização dos desfiles de Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos, no dia 01Mar8l,[sic] (…), por volta das 22,00h [sic] um grupo aproximado de 200 ( duzentas ) pessoas, manifestando-se contra a instalação de USINAS NUCLEARES naquele Município, tentaram a todo custo, realizar passeata de protesto contra a tomada de posição do Governo Federal.”
A descrição dos adereços utilizados permite imaginar que o desfile seria bem animado. “Os manifestantes, participando alguns fantasiados de caveiras e curativos, portavam diversas faixas, dentre as quais se destacavam “NOSSO COMPROMISSO É COM A VIDA” , “UNIDOS DO MUNDO CONTRA A IRRADIAÇÃO ” , “USINA NUCLEAR NÃO? PORQUE APRESENTA O PRINCÍPIO E O FIM DA USINA NUCLEAR”.
De acordo com o relato, houve intervenção da polícia (não se sabe em que termos) e das autoridades organizadoras, e ficou combinado que o bloco desfilaria por último. Pelo visto o Bloco Antiusina foi ludibriado. “ Isso não ocorreu, tendo o evento sido considerado terminado e a área liberada ao tráfego”, informa o espião.
No dia seguinte, os manifestantes fizeram nova tentativa, sem sucesso. Desta vez, foram “persuadidos pelos policiais militares de serviço no local, os quais alegaram que o Bloco não podia desfilar, pois não possuía Alvará expedido pela Autoridade competente”.
No relatório sobre o “Dia do Luto Nuclear”, ocorrido na Praça Mauá, em Santos, os informantes descrevem os indivíduos que discursaram e o teor das falas, além de destacar a participação de alguns elementos considerados “subversivos”: um líder sindical portuário, vereadores santistas de oposição, advogado trabalhista, ex-político cassado, o presidente da Juventude Democrática de Santos e o último presidente do Centro dos Estudantes de Santos.
As lideranças dos protestos – ou os “cabeças”, nos termos dos informantes — mereciam atenção especial. Há, no prontuário, comunicações (TELEX) em que o DOPS/Santos solicita “antecedentes criminais e políticos” e “outros dados julgados úteis” de pessoas citadas nos relatórios.
O intrincado aparelho de espionagem e repressão utilizado pelo governo autoritário não se descuidou das mobilizações antiusina, o que mostra que não se tratava de um movimento de “uns poucos baderneiros”. A amplitude do movimento — que não ficou restrito às cidades atingidas —, a diversidade de segmentos da sociedade envolvidos e a repercussão na mídia local e nacional, permitem concluir que o “Usina Nuclear Não!”, apesar de não se configurar como movimento articulado, teve papel preponderante no recuo e abandono, por parte do Governo Federal, do empreendimento atômico na Juréia.
Mas, e a turma do “Usina Sim” quem eram? O que propunham e prometiam para a cidade? Houve diálogo entre técnicos do governo e a sociedade peruibense? No próximo artigo, tentaremos conhecer os defensores da instalação dos reatores nucleares em Peruíbe.
Texto e Pesquisa: Fábio Ribeiro*
*Professor de História da Rede Pública e Mestre em História Social pela FFLCH/USP
Imagens: Creditadas no local
Publicação: Márcio Ribeiro / O Garoçá
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Fontes Consultadas
Jornal “O Estado de S.Paulo” disponível em http://acervo.estadao.com.br
Jornal “Folha de S.Paulo” disponível em http://acervo.folha.uol.com.br
Jornal “O Globo” disponível em http://acervo.oglobo.globo.com
Outros jornais citados http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Acervo DEOPS http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/escritos
Revista “Veja” https://complemento.veja.abril.com.br/acervodigital/index-novo-acervo.html
ANEXOS
PARTE 2
PARTE 1
Ensaio Fotográfico
Ensaio fotográfico: Viaje no tempo e veja fotos históricas e recentes de pichações antiusina
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Sobre o autor
Sou Jornalista, Técnico em Turismo, Monitor Ambiental, Técnico em Lazer e Recreação e observador de pássaros. Sou membro da Academia Peruibense de Letras e caiçara com orgulho das matas da Juréia. Trabalhei na Rádio Planeta FM, sou fundador do Jornal Bem-Te-Vi e participei de uma reunião de criação do Jornal do Caraguava. Fiz estágio na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Peruíbe e no Jornal Expresso Popular, do Grupo "A Tribuna", de Santos, afiliada Globo. Fui Diretor de Imprensa na Associação dos Estudantes de Peruíbe - AEP. Trabalhei também em outras áreas. Atualmente, escrevo para "O Garoçá / Editoria Livre" e para a "Revista Editoria Livre."