O nascimento da religião, segundo René Girard
O pensador francês René Noël Théophile Girard, que era teólogo, filósofo, professor de literatura comparada, filólogo, historiador e antropólogo – é provável que eu esteja esquecendo de algo –, revolucionou a forma como entendemos alguns conceitos chave da religião e do comportamento das massas. Graças à abrangência de seu pensamento, René Girard ganhou do filósofo Michel Serres o apelido de “Darwin das ciências sociais”. Nenhum conceito na área do comportamento humano pode ser tomado como verdade absoluta, mas as teorias deste autor dão o que pensar.
Por exemplo, para ele, a tendência das multidões é canalizar a violência coletiva em um único indivíduo. Pensou em bode expiatório? É isso mesmo. A ideia fundamental de Girard, que permeia todo o seu pensamento e que providenciou os fundamentos de suas obras, foi a compreensão de que o desejo humano é mimético, ou seja, que todos os nossos desejos são copiados a partir de um Outro e não de forma autônoma. Eu desejo algo porque esse algo é desejado por outro. Girard compreende que todo conflito nasce do desejo mimético. Sendo assim, o mecanismo do bode expiatório, que coloca um fim a esses conflitos, teria sido a origem dos sacrifícios, que por sua vez, deram origem as diversas culturas existentes. A institucionalização e sistematização da religião, para Girard, foi o que proporcionou um controle dessa violência mimética e o que proporcionou o surgimento da cultura ocidental. Toda essa estrutura estaria exposta no mito fundador exposto na Bíblia.
Em outras palavras, o bode expiatório seria uma vítima inocente que, num passado bem remoto, em que a selvagem luta pela sobrevivência era uma constante, consegue unir o grupo, que a mata num linchamento. Esse grupo, após descontar sua violência sobre a vítima, sente-se apaziguado, e assim passa a enxergar nela alguém capaz de desestabilizá-lo e de restabilizá-lo. Seria esse o motivo de a vítima ser divinizada.
Esse ritual de linchamento precisava ser repetido de tempos em tempos, sempre que as tensões começavam a se tornar mais acirradas. Para que o período de paz se sucedesse, era preciso que se acreditasse na culpa da vítima que estava sendo sacrificada.
Girard abre seu livro, O Bode Expiatório, expondo um texto de perseguição medieval, um poema de Guillaume de Machaut no qual os judeus são acusados de envenenar a água de uma cidade. Com as informações que temos hoje, nós sabemos que aqueles judeus eram inocentes. Na época, seus acusadores deveriam acreditar realmente em sua culpabilidade.
O cristianismo teria surgido, segundo essa teoria, para dar fim aos rituais de sacrifício, colocando em seu lugar a consciência da responsabilidade individual e substituindo a vingança pelo perdão – aqui em seu sentido original de per donare. Sendo assim, do ponto de vista social, o enfraquecimento do cristianismo, sem um substituto equivalente para as tensões sociais, poderia trazer de volta a necessidade do bode expiatório, rachando a sociedade em tribos divergentes e conflituosas.
Compare essa tese com aquela proposta por Freud. Existem vários pontos de encontro, mas a teoria girardiana parece ser mais completa.
Essa pequena exposição está resumida ao máximo. Aconselho que você leia O Bode Expiatório, do René Girard, para compreender melhor a amplidão do assunto. De qualquer modo, acho que fica claro que as manifestações religiosas fazem parte da psiquê humana. Elas não podem ser apartadas das estruturas sociais. Mesmo que o cristianismo ou qualquer outra religião deixe de existir, algo será colocado em seu lugar. E é assim que vão se estruturando as religiões políticas.
José Fagner Alves Santos
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Sobre o autor
José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.