Como morrem os sonhos
Lembro bem do meu cabelo encharcado de suor caindo por cima dos olhos. Eu retirava com a mão sentindo aquele ardor desagradável no meu globo ocular. Ardia tanto que eu tinha vontade de chorar, mas não faria isso na frente da molecada da rua. Murilo, um garoto que morava vizinho à casa da minha avó, estava sentado no meu carro de pedal. Aquele carrinho era o resultado de um escambo feito pelo meu tio, que trocara sua Barra Circular Monark num presente para mim. O problema é que eu nunca estava dentro do brinquedo. Sempre o emprestava para algum dos meus amigos e, como não sabíamos usar os pedais, um de nós sempre tinha que empurrar. Para desgosto do meu tio, eu me divertia empurrando.
Estávamos no Bairro da Invasão, na cidade de Ipiaú, região Sul da Bahia. Era primavera de 1984 e eu tinha 5 anos de idade. Na verdade, o bairro se chamava Euclides Neto em homenagem a um ex-prefeito da cidade que era também advogado e escritor. Uma espécie de Graciliano Ramos da Região Cacaueira. Dr. Euclides, como era popularmente conhecido, executou a primeira experiência de reforma agrária que se tem notícia aqui no Brasil, ainda no início da década de 1960, com a Fazenda do Povo. Mas o bairro era mais conhecido como Invasão, já que a maior parte dos terrenos foi mesmo desapropriada.
O lugar ainda não tinha sistema de esgoto, calçamento, coleta de lixo ou qualquer coisa que lembrasse a civilização. Era um emaranhado de barracos de madeira, todos tortos e cobertos de Eternit. Naquela época a população era composta de negros, pardos e mestiços. Todos muito pobres. Não acredito que a composição étnica tenha mudado muito desde então.
Naquele dia, uma chuva que caiu ao amanhecer deixou as ruas enlameadas, o que não nos impediu de brincar. Por volta das 11h da manhã a terra já estava seca. Não é preciso dizer, no entanto, que eu, assim como toda a molecada, estava imundo.
Que atitude narcisista da minha parte começar um relato sobre as origens do Brasil contando uma história pessoal. Mas a questão é que, para mim, foi ali que tudo começou. São partes das minhas lembranças mais antigas. Um período de descoberta do mundo. E as pessoas desse mundo eram negras e pardas. A maior parte deles tinha apenas noções rudimentares de leitura e escrita (esse detalhe se modificou radicalmente desde então).
Muita coisa havia mudado nos últimos 484 anos, desde que Pero Vaz enviou a famosa carta ao Rei de Portugal. Se Caminha descrevia os pardos de sua época como “um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos”, os de 1984 já eram bem outros. Mestiços entre negros, brancos e índios, nós sofríamos de subnutrição, dentes careados, trabalho subumano. Éramos muito mais próximos da figura descrita por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala que do belo selvagem relatado por Caminha.
Eu mesmo sou mestiço. Minha avó era filha de um português com uma tapuia, meu avô era um mulato, um moreno claro, como costumávamos nos referir em nosso racismo velado.
Em resumo, corre em minhas veias o sangue africano – entre os meus antepassados estão alguns dos três milhões e quinhentos mil escravos trazidos para o Brasil no período de 1560 a 1850 -, o sangue português – não necessariamente o do desbravador, visto que meu bisavô chegou ao Brasil no início do século XX. Tenho também o sangue indígena da minha bisavó tapuia, uma velha índia surda que sempre se mostrou de bem com a vida.
Diferentemente do que aconteceu com os tupinambás e com os guaranis, os tapuias – que não eram um povo em si, mas a designação de todos os nativos que não pertencessem ao tronco linguístico tupi-guarani –, sempre foram estigmatizados como canibais. Não poderia haver confusão maior. Inclusive, há muita divergência sobre a origem do nome tapuia. Há diversos entendimentos das origens do termo, mas em geral observa-se que seria de procedência tupi.
“Tapuia significa bárbaro, inimigo. De taba – aldeia, e puir – fugir: os fugidos da aldeia” escreveu José de Alencar, no seu mais famoso livro, Iracema, de 1865.
Mas, divago. Voltemos ao assunto em questão.
Sou o típico brasileiro. Um caboclinho mirrado que descende das três principais matrizes étnicas que compõe o País. Se procuro começar esse relato com uma história pessoal é só para facilitar a identificação com o leitor. Além do mais, um enredo que contextualize os fatos deixa o texto menos cansativo e não faz mal a ninguém.
Para nós, diferentemente do que acontece nos estados mais ao Sul do Brasil, o normal é o pardo. O caucasiano sempre representou a minoria.
Enquanto eu empurrava o Murilo no meu carrinho amarelo de pedal, minha avó chegou da porta do seu barraco e gritou: “José Fagner, vem comer!”
Me irritava muito a mania que ela tinha de me chamar pelo nome completo. Minha mãe costumava me chamar de Jota Efe ou só de Fagner, meu tio, aquele que me deu o carrinho de pedal, me chamava de Jota. Mas minha mãe tinha se mudado para a cidade de Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro, em busca de um trabalho que a permitisse pagar as contas do pequeno Fagner. Meu tio era jovem demais para se preocupar com meu almoço.
Depois de um belo banho, enquanto comia, comecei a conversar com a minha avó. Ela me avisou que eu não deveria “ficar pegando picula” durante a tarde. Afinal, iríamos num comício de um candidato que prometia fazer algo pelo bairro e ela não me queria todo sujo. Curiosamente minha avó não era uma mulher que dependesse de políticos ou de quem quer que seja. Com seu baixo nível de instrução formal – havia cursado até a segunda série – sempre trabalhou como profissional autônoma. Em algumas épocas do ano ela até se empregava nas roças de cacau, que era quase toda a opção de emprego daquela região, mas passado a época das grandes colheitas ela voltava às suas outras ocupações.
É difícil dizer o quanto disso é memória e o quanto é construção posterior. Citando Stendhal, posso afirmar que “revejo o acontecimento, mas provavelmente não se trata de uma lembrança direta, não é mais que a lembrança da imagem que formei da coisa muito antigamente, à época das primeiras narrativas que me fizeram dela”.
Mas para ser justo comigo mesmo, lembro-me de coisas da minha infância, e deste episódio em especial, que ninguém me contou. Mas, como escreveu Maurice Halbwachs no início do seu A memória coletiva:
“Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos pareçam obscuras”.
E lá fomos nós assistir ao comício. O que consigo me lembrar desse evento é de uma feroz discussão que minha avó fomentou com o dito político.
Não me recordo os motivos ou mesmo como saímos daquela confusão, mas, dias depois, estava com ela em seu barracão no então bairro da “Invasão”, quando alguém bateu à porta. Ao abri-la, minha avó recebeu um violento golpe de facão que rasgou seu pulso. Não sei se por conta do meu grito ou por alguma insólita crise de consciência que o acometeu ao ver uma criança presenciando a cena, aquele homem de roupa escura, mascarado, com um facão na mão e respingos de sangue na camisa fugiu correndo ladeira abaixo.
Saí desesperado a procurar os raros vizinhos que logo apareceram alertados pelos meus gritos.
Olhei minha avó (mulher forte e determinada), ferida, deitada no chão enquanto algumas vizinhas amarravam tiras de panos ao redor do seu ferimento e uma tia, que acabara de chegar, se deslocava em busca de um carro que pudesse levar a vítima até o hospital mais próximo.
Fiquei pensando em como os anseios dos ricos se sobrepunham ao destino dos mais pobres, principalmente por sermos tapuias, por ser eu um curumim mestiço e sem recursos. Começava ali a entender a mendacidade daqueles que foram eleitos para nos proteger – claro que pensava tudo isso com outras palavras –.
Quando o carro finalmente chegou, eu não chorava mais. Só pensava em como eu poderia fazer para tirar a minha família daquela situação…
Sobre o autor
José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.