A minha história com o livro “O Exorcista”

O primeiro cheiro ruim – que não era de Jasmim – me fez acreditar que eu logo me borraria nas calças após a pergunta que fiz ao meu coração, mãos, unha do pé e ao resto de mim mesmo:  Por que eu comprei este maldito livro do Exorcista?

Sentir o tempo parar, ver as pessoas em câmera lenta, suar frio, tremer, se sentir vigiado era como estava a “confusa confusão no meu já confuso ser.”

Para quem conhece o meu irmão, o Marcelo Ribeiro, exímio professor de violino, sabe que ele gosta de uma boa prosa nos assuntos relacionados aos mistérios da vida e das coisas “incompreensíveis-que-não-tem-compreensão-e-que-ninguém-compreende.” Enfim, destas coisas que dão medo na gente. Logo eu volto a falar dele…

Eu trabalhava na Tribuna, em Santos, e decidi faltar no curso de jornalismo naquele dia 13, sexta-feira.

Dia 13, sexta-feira 13, entendeu? Pois eu demoraria um pouco “para entender isso, o que eu não entendi…”

Pois bem, como eu estava contando… Decidi faltar e me utilizei do orgulhoso cargo de Diretor de Imprensa que exercia na Associação dos Estudantes de Peruíbe – AEP –para descolar um “busão” de volta para a minha cidade, fora do meu horário.

Ah! Como Santos me tomava o tempo e me estressava (Mentira. Quem me conhece sabe que eu não me estresso por nada, mas deixa eu enganar aqueles que não são chegados). Eu não via a hora de respirar o ar puro que desciam das montanhas dos Itatins e que encontravam repouso nos alvéolos dos pulmões de minha gente. Santos fedia em vários aspectos…

Consegui a vaga com apenas um telefonema, pedi para me pegarem o mais perto da rodoviária possível e o local  marcado foi a Praça dos Andradas, na calçada do Teatro “O Guarani” e  pra “lá fui, rumei e andei.”

Para matar o tempo, a fome e a sede, parei no bar do San e fiz os meus pedidos, que vieram invertidos: O pastel de frango veio gelado e a Schin estava quente e choca, mas tudo foi devorado com muita vontade (O Eddie Silva me diria que fortalece o sistema imunológico frequentar certos bares, leia o Boa noite Cinderela escrito por ele). Depois, fui observar as aves feias que tentavam cantar na praça.

Logo pensei: As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, diria o finado  Gonçalves Dias, que morreu um dia após o dia de finados e, se caso tivesse alguma parente chamada Eva, teria na família o curioso nome – Eva Dias.

Estava distraído, olhando pro alto e com pena de uma Sabiá-laranjeira que não sabia cantar, quando tive que desviar de um livro que passou que nem uma guilhotina lambendo o meu pescoço.

Que susto! Foi a primeira vez que a obra de Willian Peter Blatty  tentou comer os meus miolos, pois o vendedor do sebo pendurara “o Exorcista” bem na “entrada de quem ia entrar…”

– Ei! Quanto custa o livro? Disse eu sem pensar, como se fosse movido pelas forças das trevas.

– “É 20 reais”, disse o homem de bigode.

Caramba! É a cara do meu irmão, “pensei eu sozinho, só, comigo mesmo”.

Vou comprar e dar a ele de presente. Ele gosta destas coisas e vai gostar do livro (Não disse que ia voltar a falar do meu irmão? Aquele terceiro parágrafo era só pra dizer isso)

Consultei o meu bolso, desembrulhei um punhado de notas amassadas de dois reais que peguei de troco lá no “China” e adquiri o exemplar. O alfarrabista contou as notas, não me agradeceu  e pegou um espanador para espanar o sebo do Sebo.

Olhei no celular e eram 13:13. Opa, opa, opa! É  hora de esperar o “coletivo particular de várias pessoas” no local combinado…

Finalmente, após alguns minutos, entrei no ônibus que estava com quase todos os seus assentos lotados com universitários peruibenses que estudavam de manhã, vindos dos mais diversos cursos das faculdades de Santos. Eu era da turma da noite e não conhecia grande parte deles.

Passei por três lugares vagos e fui até o fundo ver se tinha algum outro sobrando…

Não encontrei nenhum, apenas a mão boba de um cara na “perna” de outro cara. Voltei pelo corredor e refutei a primeira vaga que vi, ao lado da patricinha, que quase trovejou com o seu olhar de céu azul. Também não me sentei ao lado de uma aluna charmosa que tentou desocupar um dos dois assentos que o seu corpo ocupava. Olhei mais para frente e fui até aquele menino de cabelo lambido mesmo, com cara de pateta, que estava com a sua mochila no assento ao lado.

-“Ô! Acorda aí, mano.”, eu disse a ele, dando três tapinhas no seu braço.

Já entendendo o que eu queria, ele limpou disfarçadamente a baba do seu rosto com a manga da sua blusa, tirou a mochila do lado e disse gentilmente com a cara amassada e frisos:

– “Foi mal, aí…”

Dei um sorriso sem graça e me sentei confortavelmente para abrir as primeiras páginas.

O livro começa contando a história de uma escavação feita no norte do Iraque, liderada por um jesuíta, o Padre Merrin,  quando foi descoberta uma estatueta de um demônio…

Tudo bem, não darei “spoiler” sobre o livro, já que isso é o politicamente correto da vez, apesar de que, o politicamente correto ainda não viu a sua vez no Brasil.

Eu estava sentado “lendo o livro que eu estava lendo”, dominando totalmente os braços dos bancos e com o cotovelo apontado para o meu colega ao lado (com o intuito de atingi-lo, caso ele ousasse se mexer um centímetro para o meu lado), mas  a minha animação foi rolando círculo dantesco abaixo quando as seguintes perguntas vieram à minha cabeça:

Por que eu comprei este livro? Por que resolvi presentear o meu irmão, sendo que eu nunca lhe dei nada? Por que o livro ficou balançando na minha frente? Por que justo na sexta-feira 13?

Confesso que tais perguntas “perturbadoras perturbaram o meu já perturbado” ser.

Um frio intenso percorreu toda a minha espinha e arrepiou até os pêlos próximos da região do cóccix. Até me lembrei do trecho de uma letra de música:

“É inverno no inferno e nevam brasas. Por favor, escondam-se todos nas suas casas. Pois o anjo caído voa com novas asas…”

-Vou me livrar logo desta droga! Só  Jesus na causa, pensei em baixo e ruim som, no momento que o menino ao lado tenta se afastar de mim, espremendo-se no canto, com cara de assombro.

Abri a mão, fiz um círculo com o polegar e o indicador na direção dele, mandando-o para aquele lugar e não liguei para o sonolento. Como a viagem é longa, continuei a leitura e fui me interessando cada vez mais por ela.

Logo, com o passar dos dias,  muitas páginas do livro foram ceifadas.

Nele, estranhos “acontecimentos começam a acontecer” no quarto da menina chamada Regan MacNeil, como barulhos no sótão e outras estranhas situações.

Na minha casa, a minha filha era pequena e  passei a perceber sons estranhos vindos do telhado. Eu, “cagão” que sou, já não conseguia dormir bem…

Na faculdade, no trabalho, na roda de amigos e até no bar da universidade eu ficava olhando e procurando o demônio em cada uma das pessoas que eu via ou conversava.  Quem ali teria uma história parecida com Regan MacNeil?

Confesso que “tentei não cair na tentação” de observar estas coisas, mas como vê, não consegui.

Apesar da leitura fazer pipocar as minhas inquietudes espirituais, me empurrando  mais para perto de Deus, decidi que não ia mais ler o livro e que o passaria logo para frente, pois estava ficando muito impressionado com a história.

Certa vez, após ler um capítulo de possessão, olhei para a parede onde estava a imagem de Jesus Cristo e parece que ouvi uma voz, após uma leve piscadela:

– “Só eu na causa!”

Antes de exorcizar o livro, resolvi consultar, em particular, dois colegas que trabalhavam comigo na Tribuna para saber o que eles achavam daquela leitura e das minhas impressões

Ambos deram respostas iguais, sem qualquer tiração de sarro. Disseram que se tratava apenas de um livro e que eu poderia lê-lo tranquilamente, sem problema algum.

No fundo eu concordava com eles e até sabia muito bem disso, mas “sou tão desconfiado que desconfio até de mim mesmo”.

Agradeci aos dois e como desafiasse uma lâmina afiada, continuei com a leitura, até por que me descobri, posteriormente, um péssimo vendedor de livros.

Consultei também uma tia espírita. Ela também disse que era  apenas um livro, mas que não gostaria de ler, pois aquela leitura pode nos deixar com energias negativas e numa faixa vibratória ruim, acessível a inimigos ocultos.

-“Márcio, é bom crer em Jesus.”, disse ela na minha despedida, quando me lembrei da piscadela…

A idéia de dar o livro ao meu irmão ainda estava de pé, mas caiu por terra quando o alfarrábio caiu da minha mão na casa da minha mãe, onde ele mora. Disse ela, após este acidente:

-“É aquele livro da menina que vira o pescoço? Deus-me-livre de um livro destes! Livrai-me do livro, Márcio Ribeiro!”

Se não fosse uma pequena caixinha de música que dei ao meu irmão no ano passado, estaria eu até hoje sem dar  qualquer presente físico a ele…Acho que ninguém merece um irmão como eu…

Possuído pela minha leitura e impressionado com as minhas impressões, resolvi pesquisar sobre o autor do livro, o Willian Peter Blatty.

Pensa num cara doido? O maluco se refugiou em uma cabana, nas Montanhas Rochosas, sozinho, por meses, para escrever o livro. Confesso que fiquei ainda mais assombrado.  

Ah! Depois pesquisem essa história que li sobre o autor. Lembro de ter lido em algum lugar, mas agora que escrevo esta crônica, não encontrei a fonte que provavelmente deve ter sido queimada em um dos caldeirões do capeta.

Terminei toda a leitura, movido a combustão do medo, e nada de grave me aconteceu e nem vai acontecer (a palavra tem poder), apenas o incômodo de ter que guardá-lo comigo.

Passar pelo corredor da minha casa e olhar  de esguelho o nome ou  a capa dele todo santo dia não me agradava em nada e, por isso, eu precisava tirá-lo da minha vida o mais rápido possível.

Passados alguns anos após a minha tentativa de vendê-lo rápido,  contei esta história à uma amiga, a Janaína de Jesus, e disse a ela que queria me desfazer do livro.

Ela, obviamente, riu da minha cara e disse:

– “Para de ser bobo, Marcinho. Como você é besta.”

No fundo, eu gostava quando as pessoas riam da situação e me pediam tranquilidade. Era um alívio. Imagina se me dissessem para eu ficar com medo?

Também acho legal quando as pessoas riem em uma conversa comigo ou por algo que eu escrevi. A vida já é tão difícil e arrancar um sorriso de outra pessoa me deixa muito feliz e com a sensação de ter ganhado o dia.

Passadas algumas semanas, recebi a ligação da filha dela, a Nayara de Jesus, que se mostrou disposta a comprar o livro.

Pensei em dar o exemplar, pois tenho muita consideração por todos da família, mas na época eu andava contando os centavos de tal modo que “resolvi que ia resolver um pouco do meu mal resolvido problema financeiro.”

Quem sabe Jesus me mandou a Nayara para eu ter algum dindim por alguns minutos?

Combinamos o valor e ela ficou de passar em casa numa quinta-feira, dia 12, na qual esperei ansioso,  mas a espera foi em vão…

 Ela teve um contratempo e disse que não poderia ir até mim naquele dia. Me senti como se tivesse perdido  o meu maior achado.

Valente que sou, pensei um monte de besteiras e coisas ruins, entre elas, que o livro não queria se desfazer de mim (até rimou). Procurei  em casa uma caixa de fósforos e um litro de álcool, quando pensamentos “ardentes ardiam”, ascendiam e acendiam dentro de mim…

Nada fiz naquela noite!

Após engolir apenas um pão de trigo, fui dormir intrigado, contando na minha cabeça aquela história dos pratos de trigo para os tigres tristes…

Para a minha felicidade, a sexta-feira amanheceu linda e sem qualquer nuvem no céu. Respirei fundo, mandei o divino ar dos Itatins descansar nos meus alvéolos e me preparei para o desjejum…

Andei no quintal, colhi umas pitangas e escutei uma interpretação maravilhosa da Sabiá-laranjeira que “cantava majestosamente bem a música dela mesma, de sua autoria.” Pensei algo que muita gente nunca deve ter pensado, por que só os tolos devem pensar nestas coisas:

A Canção de Exílio, de Gonçalves Dias, pode ser contada tanto quanto daqui pra lá, quanto de lá pra cá (que coisa, não? Diria o Kiko, do Chaves) foi o meu pensamento quando me lembrei daquela pobre Sabiá-laranjeira, desbotada, que tentava gorjear, sem sucesso, alguma nota lá em Santos.

 Às vezes, sinto que escrevo coisas bem idiotas, mas que são importantes escrever, pois a nossa alma adoece só com as coisas sérias. Precisamos ser leves como um gás de cozinha e prontos para uma explosão.

Mais tarde, um carro no portão para e ouço em seguida palmas e um chamado pelo meu nome.

-“Marcinhoooo”

Fui atender e recepcionei a filha da Janaina, a Nayara de Jesus, que viera disposta a levar o livro e exorcizar de vez ele da minha vida.

Perguntei se ela tinha certeza do que queria, se não tinha fobia do livro e se não haveria qualquer problema em adquirir tal leitura e ela deu um sorriso endiabrado com a boca e as vistas. Vi os seus olhos verdes brilharem como uma gota de orvalho secando ao sol nascente no instante em que ela respondeu que não tem objeção. Disse para eu ficar tranqüilo e que a partir daquela dia o livro não me causaria mais problemas.

Olhei tonto, com os meus olhos cor de barata, dei um meio sorriso e aceitei os argumentos dela no momento em que minha pupila ia se fechando para se proteger de tanta luz…

Criação e Autoria: Márcio Ribeiro

Imagem: Divulgação

Contato: [email protected]

Todos os direitos reservados / Junho de 2020

Citações:

“Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias

“Eu e a doida”, de Baia e Rockboys

“Lembrei”, de Baia e Rockboys

“Deixa eu falar”, de Raimundos

Sobre o autor

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Sou Jornalista, Técnico em Turismo, Monitor Ambiental, Técnico em Lazer e Recreação e observador de pássaros. Sou membro da Academia Peruibense de Letras e caiçara com orgulho das matas da Juréia. Trabalhei na Rádio Planeta FM, sou fundador do Jornal Bem-Te-Vi e participei de uma reunião de criação do Jornal do Caraguava. Fiz estágio na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Peruíbe e no Jornal Expresso Popular, do Grupo "A Tribuna", de Santos, afiliada Globo. Fui Diretor de Imprensa na Associação dos Estudantes de Peruíbe - AEP. Trabalhei também em outras áreas. Atualmente, escrevo para "O Garoçá / Editoria Livre" e para a "Revista Editoria Livre."


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