Boa noite, Cinderela

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Sentado no canto do balcão, eu tentava apreciar o meu Straight Bourbon enquanto ouvia dois jovens conversando. Deviam ter por volta de 20 anos. Me fizeram lembrar da época em que eu também bebia cerveja apenas para matar a sede e acompanhar as porções de batatas fritas.

A conversa girava em torno de carros, viagens e garotas. Do nada, começaram a falar sobre o drink Boa noite, Cinderela, que é usado para drogar pessoas. O pavor deles era acordar numa banheira sem os rins, fígado ou sem o coração. Dei o último gole do meu Bourbon, pedi para o Jack – o bartender – uma outra dose e caminhei em direção aos dois mancebos. Sentei-me ao lado dos garotos, dei um pequeno gole na minha bebida e comecei a falar sem olhar para eles.

– Se vocês continuarem bebendo assim, não precisarão se preocupar com seus fígados e rins. Ninguém vai conseguir utilizá-los. E se vocês conseguirem “acordar” sem o coração, não terão de se preocupar com mais nada.

Os calouros emudeceram. “Deixem-me contar algo que é pior do que o Boa Noite Cinderela”, continuei.

Na idade de vocês eu também costumava beber como se não houvesse amanhã. Bebia por diversão, para matar a sede. Costumávamos beber em uma lanchonete que era o point da cidade. Como as coisas lá eram um pouco caras, não tínhamos como tomar vários chopes. A nossa alternativa – minha, do Emílio e do Amarildo, ambos amigos de trabalho – era passar antes numa pizzaria “copo sujo” e “forrar” o estômago. A pizzaria ficava num corredor e tínhamos que comer em pé, de frente para o balcão. Não tinha espaço para cadeiras ou bancos. Mister Miyagi, apelido que demos ao chinês proprietário, gostava da nossa presença porque não nos importávamos com os mosquitos nem com a falta de higiene do local. A pizza era boa e barata.  Posso garantir que, boa parte da minha imunidade foi adquirida naquele local.

Com o estômago “forrado” e gastando apenas “3 dinheiros”, íamos para o point da cidade, “pagar de bacana”, como vocês dizem hoje em dia. E lá ficávamos até fechar ou acabar a grana. Os garçons nunca entenderam por que não tínhamos fome. Mas, como recebiam boas gorjetas, sempre nos trataram bem.

Certa noite, enquanto o garçom servia uma nova rodada, Amarildo se levantou para ir ao banheiro. De frente para mim, do outro lado da rua, havia uma farmácia. Eu, olhando para a farmácia e ao mesmo tempo para o copo cheio do Amarildo, resolvi pregar uma peça. Pedi para o Emílio correr, atravessar a rua e comprar um laxante. Falei para comprar o mais forte que tivesse. Ele correu até lá sem pensar duas vezes. Pois já sabia o que eu tinha em mente.  Foi numa perna e voltou na outra. Abri rápido a embalagem e dei uma cheirada para ver se era possível identificar só pelo odor. Só de cheirar, senti vontade de soltar um peido. Falei para o Emílio ir ao banheiro segurar o Amarildo enquanto eu batizava o chope dele.

Antes de executar o plano, dei uma lida nas instruções. Bastavam três gotas para o “rebostério” sair à velocidade da luz. Coloquei umas 10, mexi com o dedo e o chope não perdeu nem a tonalidade. Por via das dúvidas, adicionei mais 10. Guardei o frasco, que já estava pela metade, e fiquei aguardando meus amigos voltarem. Como demoraram e o copo do Emílio também estava dando sopa, pensei: Por que não? Taquei mais 20 gotas no outro copo. Seria engraçado ver os dois correndo para o banheiro, disputando o vaso.

Minutos depois, os dois voltaram e começaram a beber como se nada tivesse acontecido. Eu ria da situação. Emílio também ria porque havia participado do engodo; e o Amarildo ria por causa do efeito de tantas bebidas.

Algumas horas se passaram e nada aconteceu. Duas possibilidades vieram à minha mente: a farmácia havia vendido remédio vencido ou a imunidade que havíamos desenvolvido na pizzaria do Mr. Miyagi era muito forte. Depois de mais alguns copos, era hora de irmos embora. Me despedi dos dois e cada um foi para a sua casa. Terminei a noite frustrado, sem poder dizer, como havia planejado: “Boa noite, diarreia”. Frase que bolei enquanto os esperava voltar do banheiro. Como trabalhávamos na mesma empresa, tinha esperanças de rir no dia seguinte.

Cheguei cedo ao trabalho. Tinha medo que algo acontecesse e eu não estivesse lá. Primeiro chegou o Emílio, o comparsa da armação. Sua fisionomia estava serena. Nenhum sinal de que o remédio fizera efeito. A única coisa de diferente do habitual era que ele tinha ido trabalhar de calça moletom. Até hoje não soube explicar o motivo dessa mudança. Eu queria crer que era pela facilidade de arriar na hora de ir ao banheiro. Ele deve ter descoberto a “bola nas costas” da pior maneira. Mas o nosso lema sempre foi: “perdemos a amizade, mas não a piada”. Então, seria questão de tempo até ele devolver na mesma moeda.

Logo chegou o Amarildo. Mas ele também não comentou nada durante todo o dia. Deixou para contar à noite, logo após sairmos do Mr. Miyagi.

“Rapaz”, começou ele, “ontem à noite cheguei em casa e minha mãe havia feito uma buchada, estava na panela ainda. Não tive dúvida e mandei duas pratadas pro bucho. Mal cheguei à metade do segundo prato, meu estômago reclamou e foi o tempo de correr e sentar no vazo. Parecia que o mundo estava acabando. Eu urrava de dor. minha mãe perguntou: ‘o que foi, filho?’, e eu respondi que foi a buchada estragada que tinha acabado de comer. ‘Joga fora essa porcaria’, gritei estre os intervalos da cólica.”, contou num tom de voz de amolecer o coração.

Eu tive de fazer esforço para não rir. Aquele era o momento de dar apoio, mostrar preocupação. Minha perna ficou cheia de manchas de tantos beliscões que eu me auto infligi na esperança de conter o riso. Emilio, a julgar pela sua fisionomia, parecia entender a dor e o sofrimento que nosso amigo havia passado. Amarildo concluiu sua narrativa contando que a mãe dele jogou fora a buchada e que ele passou a noite inteira tomando chá de boldo. Mas que já estava bem e nunca mais iria comer buchada, que era seu prato favorito.

Fomos para a nossa lanchonete e logo estávamos rindo como se nada tivesse acontecido. A partir daquele dia, comecei a tomar todos os cuidados possíveis, pois sabia que um dia eu poderia provar do meu próprio veneno. Digo: remédio, o boa noite, diarreia. O ato de pedir um novo chope quando íamos ao banheiro – muito normal entre nós – ficou para depois que voltássemos. Todo esse cuidado era para garantir que não tivéssemos nenhuma surpresa. Passei a nunca deixar o copo com chope sozinho. Isso valia para qualquer ocasião. Até mesmo no trabalho foi preciso dobrar a atenção. Evitava deixar água, refrigerante, suco ou qualquer coisa que fosse, num copo sem nenhuma vigilância.

Nesse trecho da minha narrativa, olhei para os jovens. Eles estavam mudos e pareciam duvidar da minha história. Chamei o Jack e pedi para servir três doses de Bourbon. Falei para eles:

– Não se preocupem, é por minha conta.

Pelo modo como pegaram no copo eu percebi que nunca haviam tomado uma bebida de qualidade. Ficaram me observando e copiaram meus gestos.

– Mas, como o senhor sabe que isso é pior do que o “Boa noite, Cinderela?”, perguntou um dos mancebos.

Dei um novo gole no meu drink e retomei a narrativa. Era cinco de junho, uma sexta-feira. O ano era 1987. Já estávamos na lanchonete havia algumas horas, esperando dar o horário em que chegaria o último ônibus da madrugada. Caso alguém perdesse o madrugueiro das 2h, só poderia pegar outro às 6h da manhã. Ninguém se arriscava a perder, mas ficávamos até o horário limite e aí nos despedíamos. Como de costume, sentei-me lá no fundão, pois a viagem era longa. Passados uns 20 minutos do início da viagem, algo estranho começou a reclamar na minha barriga. Não levei muito a sério, porque sabia que as pizzas do Mr. Miyagi, geralmente, me davam prisão de ventre. Três minutos depois da primeira reclamação a coisa começou a ficar séria. Comecei a suar frio, mas ainda faltavam uns 30 minutos para chegar em casa. Na madrugada de sexta-feira para sábado, tudo fechado. Sem chances de achar um bar, algum estabelecimento aberto para que eu pudesse usar o banheiro. Se eu descesse no meio do caminho, a caminhada para casa seria longa. Comecei a lutar contra o meu corpo. Cada ponto que eu passasse seria um trecho a menos na caminhada. O motorista parecia saber da minha situação. Ele passava nos buracos como de propósito. Cada buraco seria uns minutos a menos na minha luta. Eu já não aguentava mais e resolvi descer num ponto de ônibus perto do campo de futebol do time do meu bairro.

Não me importei com a possibilidade de ter que caminhar mais de uma hora. Naquele momento eu só queria achar uma moita. Comecei a correr em direção ao campo e mal cheguei à primeira trave, foi o tempo de abaixar a calça. O dilurimento veio numa velocidade que parecia que estava ligado a um compressor de ar. Eu cheguei a urrar de dor. Quando imaginei que havia terminado, veio uma nova remessa. Parecia que eu estava fazendo uma cirurgia bariátrica. Eliminando tudo que havia dentro de mim. O monte que eu tinha feito era tão grande que pensei em andar um pouco para o lado para iniciar outro. Aos poucos, a dor foi passando e eu comecei a voltar a mim. Pensei: e agora, como vou me limpar? Na minha pasta do cursinho tinha um talão de cheque do Unibanco e um diploma de datilografia. O que eu tinha, naquele momento não servia para nada. Nem para me limpar. Tive a ideia de usar uma meia. Fazia tempo que eu não a trocava. Então, não teria nenhum problema em jogá-la fora. Retirei a meia e, ao pôr o pé no chão, acabei pisando no primeiro monte. O par de meia mal deu para limpar o meu traseiro.

Comecei a chorar, pois estava sozinho no campo de futebol, com a lua cheia iluminando tudo. Passando o susto e o rebostério, comecei a caminhar para casa. No caminho fui refletindo sobre qual teria sido o meu momento de descuido. Sabia que tinha caído na vingança dos meus amigos. E, a julgar pela dor, a dose havia sido para elefante. No mundo o homem pode perder a mulher, perder emprego, perder tudo. A única coisa que ele não pode perder é a dignidade. Se você perder a dignidade, você perde a vontade de viver.

Olhei para os jovens e eles estavam sorrindo com o canto da boca.

– Mas se o senhor perdeu a dignidade, por que está nos contando? Não tem medo de contarmos essa história para outros?

– Tenho certeza de que vocês não vão contar.  – Respondi devolvendo o sorriso com o canto da boca. Levantei-me, paguei a conta, me despedi do Jack e fui caminhando em direção à porta.

– Como o senhor tem tanta certeza? – Insistiu o rapaz.

– Vou dar um conselho, meus caros jovens. Nunca aceitem um drink de um estranho. Vocês nunca sabem se vão cair num boa noite, Cinderela ou algo pior. Mostrei um frasquinho de laxante que estava no meu bolso, deixando os dois calouros congelados. Tenham uma boa noite, meus jovens.

Eddie Silva

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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