A cicatriz de Ulisses

MimesisA representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach

 

Como o subtítulo da obra deixa claro, mímesis é a representação da realidade na literatura ou em qualquer outra manifestação artística. A obra de arte como simulacro da realidade. O conceito ganhou força durante o Renascimento, mas o termo já estava descrito no livro Poética, de Aristóteles.

 

Com a intenção de discutir o processo evolutivo dessa mimesis ao longo da história da literatura ocidental, Erich Auerbach inicia seu livro com um ensaio intitulado A cicatriz de Ulisses. Ali ele discute e compara duas das mais antigas obras literárias da humanidade: A Odisseia e o Gênesis.

Apesar de a tradição atribuir a Homero a autoria da Ilíada e da Odisseia, e a Moisés a autoria do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), estudos literários demonstram que a questão não é tão simples. Para evitar que o ensaio se prolongue para muito além, Auerbach não entra nessa discussão, mas deixa claro essa sua opção ao final do texto.

 

A cicatriz de Ulisses

 

Partiremos do pressuposto que você já conheça as duas obras em questão. Erich Auerbach começa seu ensaio relembrando a cena em que Euricléia, ao lavar os pés de Odisseu, reconhece-o por uma cicatriz de infância. A cena é intercalada por um flashback de 70 versos, sobre a origem dessa cicatriz numa caçada a um javali durante a infância. A princípio pode parecer que Homero esteja usando um elemento retardador, tentando aumentar a tensão sobre o que acontecerá na sequência, por isso o corte abrupto.

Mas, segundo Auerbach, não é bem isso o que acontece. Para ele, Homero escreve sempre num presente contínuo, mesmo quando usa cenas de um passado distante. Não haveria profundidade ou tridimensionalidade em seus personagens. O poeta grego não conheceria o segundo plano narrativo. Não existiria, na poesia homérica, o elemento retardador – responsável por gerar a tensão na narrativa –, mas apenas a necessidade de esclarecer ao leitor questões que ele considera pertinentes. Nada fica subentendido, tudo é iluminado.

Nos trechos em que novos personagens são apresentados, um breve histórico sempre acompanha a narrativa para que o leitor não fique no escuro. Quando um deus entra em cena, Homero sempre descreve onde ele estava antes de aparecer ali, o que ele estava fazendo, qual sua intencionalidade. Isso pode ser conferido, por exemplo, na cena em que Hermes vai dizer a Calypso que ela deve deixar Odisseu partir.

Mesmo sobre os sentimentos dos personagens, Homero não se cala. Quando o personagem não conversa com o outro sobre a forma como está se sentindo, ele conta para si mesmo, fazendo com que o leitor saiba.

Nas cenas de luta ou discussão, todos são articulados e eficientes na expressão verbal daquilo que desejam. Não há frase que fique pela metade, não há informação que fique obscura.

 

O sacrifício de Isaac

 

Pintura em que Abraão segura o punhal para sacrificar seu filho Isaac

Auerbach compara esse trecho em que a cicatriz de Ulisse é descoberta por Euricléia à narrativa do sacrifício de Isaac, descrita no livro de Gênesis. Trecho esse atribuído ao autor eloísta[1] – para diferenciar do jarvista.

O trecho começa assim:

Depois disso, Deus testou Abraão. E disse-lhe: Abraão!

 – Eis-me aqui, respondeu ele.

Muitas questões não são explicadas nesta cena. De onde veio Deus? Por que ele resolveu testar Abraão? Onde ele se encontrou com Abraão? Homero teria interrompido a ação para nos contar esses detalhes, o eloísta pouco se importa.

Não é dito onde Abraão estava ou o que estava fazendo. No entanto, ele responde: eis-me aqui. Como se dissesse: estou aqui, aguardando as suas ordens.

Abraão e sua comitiva – eram dois servos, um jumento e Isaac – fazem uma viagem em que nada é descrito. Que roupa usava? Possuía algum apetrecho? Como era o burro que levava a carga?

Nada disso importa. Sabemos apenas que eles saíram cedo e que, após três dias de viagem, ele (Abraão) elevou os olhos e viu o lugar de longe.

Não sabemos se ele levantou o olhar antes disso. Auerbach diz que, é como se durante a viagem Abraão não tivesse olhado para a esquerda ou para a direita. Existe o simbolismo dos três dias e do sacrifício do cordeiro que serão reapropriados pelos autores dos evangelhos, mas isso só acontecerá muitos séculos depois.

Sabemos que Abraão partiu cedo, mas que horas ele avistou o monte? Não sabemos. Talvez antes da noite, porque deu tempo de subir e preparar o sacrifício. Reparem que, o ato de ter começado a viagem cedo não é necessariamente uma indicação temporal, mas da urgência com a qual Abraão cumpria aquilo que Deus lhe mandava.

Não sabemos de onde Abraão vem, mas conhecemos seu destino: Jeruel, na terra de Moriá. Observe que, Jeruel não é uma delimitação geográfica, da mesma forma que o “saiu cedo” não é uma delimitação temporal. Como aponta Auerbach, em nenhum dos dois casos conhecemos o limite oposto. Saiu cedo, mas chegou que horas? Chegou a Jeruel, mas veio de onde?

Enquanto Deus, Abraão, os servos e o burro não recebem adjetivações, Isaac, no começo da narrativa, ganha um arremedo de definição. “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac.” Essa definição é apenas para que o leitor entenda a importância que Isaac tem para seu pai. Não sabemos se Isaac era gordo ou magro, alto ou baixo, bonito ou feio, inteligente ou tolo. Tudo é construído com a intencionalidade de criar e aumentar a tensão.

 

O estilo de Homero e a tensão opressiva

 

Enquanto em Homero as adjetivações e explicações excessivas impedem uma concentração unilateral (não permitindo a construção de uma tensão opressiva), o relato da oferenda de Abraão, por se concentrar apenas no conflito, cria angústia e medo no leitor. Ou seja, o relato bíblico consegue concentrar a atenção do leitor numa única direção.

Na cena em que Isaac e Abraão caminham até o local do sacrifício, há um diálogo que quebra o silêncio e aumenta a tensão. Isaac carrega a lenha, Abraão leva o fogo e a faca. Isaac, meio hesitante, resolve perguntar sobre o cordeiro que será sacrificado. Abraão dá a resposta que todos nós já conhecemos: “Deus proverá o cordeiro para o sacrifício”. Esse é o trecho que será ressignificado pelos autores dos evangelhos séculos depois.

E os dois, Abraão e Isaac, seguem caminhando em silêncio. O que se passou na cabeça de Isaac? Não sabemos. Podemos apenas intuir a resignação do jovem que seria imolado. Isso faz a tensão se aumentar ainda mais.

Diferentemente do que acontece na obra homérica, existe um segundo plano mesmo nos personagens individuais. Abraão confia na promessa feita a ele pelo próprio Deus; Isaac aceita seu destino por motivos que também não estão diretamente no texto. Muita coisa fica subentendida, e é aí, segundo Auerbach, que mora a riqueza dos textos do Velho Testamento.

 

Os personagens homéricos

 

Os personagens homéricos são figuras muito mais reativas, planas, com pouca ou nenhuma profundidade. Tudo em Homero é explicado, nada é passível de interpretação. Aquiles é movido pelo seu orgulho e por sua bravura, Odisseu/ Ulisses é guiado pela sua prudência e sua astúcia.

O texto homérico dá saltos temporais, mas seus personagens vivem um eterno presente, sem a tridimensionalidade dos personagens eloístas.

Auerbach vai muito além em seu ensaio, chegando a discutir a passagem da narrativa lendária para questões históricas já nos livros de Samuel e na sua narrativa sobre os conflitos entre Davi e Saul.

A leitura do ensaio se faz muito necessária para quem quiser entender melhor essas questões.

 

José Fagner Alves Santos

 

[1] De acordo com a hipótese documental, a fonte eloísta (ou simplesmente E) é um dos quatro documentos fonte subjacentes à Torá, junto com a fonte javista, a deuteronomista e a fonte sacerdotal. A eloísta é assim chamada por causa de seu uso generalizado da palavra Elohim para se referir ao deus israelita. A fonte eloísta é caracterizada por, entre outras coisas, uma visão abstrata de Deus, usando Horebe em vez de Sinai para a montanha onde Moisés recebeu as leis de Israel e o uso da frase “temer a Deus”. Habitualmente localiza histórias ancestrais no norte, especialmente Efraim, e a hipótese documental sustenta que deve ter sido composto naquela região, possivelmente na segunda metade do século IX a.C. Por causa de sua natureza altamente fragmentária, a maioria dos estudiosos agora rejeita a existência da fonte Eloísta como um documento independente coerente. Em vez disso, o material E é visto como consistindo em vários fragmentos de narrativas anteriores que são incorporadas ao documento javista.

Gravei um áudio sobre isso. Aperte o play e comece a ouvir.

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Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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