Dose para Elefante
Nossa partida de futebol foi interrompida abruptamente quando o Batatinha chegou correndo espalhando a notícia do dia. “O circo chegou! O circo chegou!”, gritava ele. Era a desculpa perfeita para que o meu time, que estava levando uma goleada, saísse de campo correndo, sem ficar muito explícito que a vaca já tinha ido para o brejo. O time adversário nem questionou a nossa ação e correu junto para ver o tal do circo que estava chegando ao bairro.
Nem foi preciso perguntar para o Batatinha, pois sabíamos onde o circo costumava ficar, numa praça ao lado da escola municipal. Depois de corrermos 10 quadras sem olharmos para trás – o equivalente a jogar meio tempo de uma partida sem a bola sair do campo, ou haver cobrança de falta – chegamos ao local, com algumas câimbras e, a maioria dos jogadores, com dor no baço. Não tínhamos nenhum médico, mas sabíamos que, normalmente, as dores na virilha esquerda, após uma corrida ininterrupta, eram causadas pelo baço. Pelo menos era o que o Zé Colmeia – o mais velho da turma – tinha falado. Todos aceitávamos sem questionamentos, afinal, o palavreado era bonito e parecia fazer sentido.
Após respirações longas e pausadas, método indicado e monitorado pelo Zé Colmeia, voltávamos à boa forma.
Os caminhões ainda estavam sendo descarregados, mas podíamos ver alguns velhos animais em suas jaulas. Galileu – goleiro do time adversário – sugeriu chegarmos perto da jaula do leão. Embora a jaula estivesse trancada com cadeado, qualquer suplicante saberia que aquela não era uma boa ideia. Todos olharam simultaneamente em direção ao autor da sugestão. Ele logo entendeu que sua ideia havia sido reprovada. Aquilo não era muito comum.
Horas se passaram até que todos os caminhões estivessem descarregados. O próximo passo dos funcionários era montar o picadeiro, arquibancadas, e por fim, levantar a lona. Tudo isto aconteceu nas 48 horas seguintes. Aquele circo mudou toda a nossa rotina de férias. A nossa agenda, antes da chegada do circo, consistia em acordar cedo todos os dias, colher umas amoras, ameixas, pêssegos, nas casas dos vizinhos sem sermos descobertos e sentar numa sobra para saborear o nosso legítimo breakfast de pousada colonial.
Nas segundas, quartas e sextas-feiras, jogávamos futebol logo após o nosso lanche matutino, até vencer o alvará de cada um, que, geralmente, era quando terminava a novela das oito e as nossas mães se davam conta de que não havíamos nem jantado. Os berros de cada uma delas ecoava de forma sincrônica. Qualquer maestro ficaria orgulhoso. Já nas terças e quintas-feiras, íamos pescar ou nadar no rio Pedreira para relaxar os músculos das pernas do esforço feito no dia anterior, por jogarmos bola por mais de 10 horas seguidas. Essa intervalação surgiu depois que percebemos como ameaças de mãe não duram muito. Sempre que passávamos um dia sem jogar, nossas mães esqueciam das promessas feitas no dia anterior.
Mas, toda a nossa agenda foi colocada de lado por causa do circo. Ficávamos sentados nas calçadas ou embaixo de alguma árvore que provesse alguma sombra, para acompanhar qualquer movimento ou detalhe que pudesse denunciar a função de cada um. Até aquele momento, tínhamos descoberto quem eram os trapezistas, o domador dos animais e desconfiámos que um anão e um velhinho poderiam ser os palhaços. Mal podíamos esperar pela estreia. Seria o momento em que começaríamos a série de chavões: “eu te disse”, “eu falei” e “eu sabia”.
Para evitar qualquer contato com os animais, inclusive evitar de passar por perto das jaulas, fizemos uma votação imparcial e o Batatinha ganhou por unanimidade – foi a segunda vez que aconteceu na mesma semana – todos concordarem com o assunto em pauta – que ele seria o encarregado de ir até o local, perguntar mais detalhes como: o dia de estreia, o valor do ingresso e se era verdade que eles davam carne de cachorros para os leões.
Batatinha foi a contragosto, mas voltou logo em seguida, na velocidade do filho do vento. Depois de sua respiração voltar ao normal, falou que a conversa estava indo bem até chegar na última pergunta. O homem mudou a sua feição e tirou do bolso um molho de chaves que até o Batatinha, que era o menos esperto da turma, deduziu que eram as chaves dos cadeados das jaulas. Naquele momento o Reverendo Moon soltou o “eu sabia” que ele era o domador dos animais.
Pela primeira vez, todos nós elogiamos o Batatinha pela sua bravura e por trazer as informações que precisávamos. Todos nós, naquele momento, no tribunal popular e sem a necessidade de apresentar provas, sentenciamos o domador de animais, culpado em primeiro grau pela matança e sumiço dos vira-latas do nosso bairro.
Fomos colher algumas frutas para depois discutirmos qual seria a sentença que iríamos aplicar ao domador. Zé Colmeia realmente tinha razão, qualquer decisão deveria ser feita com a barriga cheia. Uma coisa sabíamos, teríamos de agir rápido, pois a estreia do circo seria na sexta-feira à noite e o nosso tempo era curto, pois já era meio-dia de quinta-feira. Voltamos ao lugar da suposta chacina para ver se encontrávamos alguma prova concreta.
Quando chegou o horário do domador assassino alimentar os animais, ficamos atentos para ver a cor da carne, se estava sangrando ainda, ou se havia algo que pudesse ser reconhecido, de algum cachorro conhecido. Devido à nossa distância – por motivo de segurança – não conseguíamos analisar muito bem.
“E se fossemos ver o Seu Jorge – dono do único açougue do bairro – e perguntássemos sobre o movimento? Ele costuma reclamar de movimento fraco”, sugeriu Bacamarte. A ideia era boa. A carne fresca dada aos animais deveria vir de um açougue próximo ao circo. Corremos até o estabelecimento do Seu Jorge e o enchemos com várias perguntas. Como as respostas eram evasivas, acabamos colocando mais um na lista de suspeitos. Voltamos ao circo desacorçoados. Tínhamos certeza que o crime seria esclarecido naquela mesma tarde.
Após ficarmos algumas horas palitando os dentes, tirando os fiapos da manga que tínhamos colhido e comido no caminho de volta do açougue, eu tive uma ideia.
“Turma, vocês observaram de onde o domador toma água?”, perguntei de modo retórico, mas Batatinha, que tinha aumentado sua autoestima, respondeu na lata: “Daquele barril azul, do lado do trailer dele.” A resposta era óbvia, desde segunda-feira ele bebia água daquele barril, umas quatro vezes por dia. Batatinha voltou a cair no nosso conceito.
“Vamos pregar uma peça nele”, emendei sorrindo, imaginando a cena.
“Dar vários tiros com a espingarda de pressão para esvaziar o barril na noite e amanhã ter que encher de volta?”, perguntou Barnabé.
“Não, Barnabé. Vamos colocar um laxante na água e, amanhã, na estreia, ele ficará preso no banheiro o dia todo.”, expliquei minha ideia maquiavélica. “Quem tem laxante em casa?”, perguntei em seguida. Dos nove moleques, cinco garantiram que tinham em casa um vidro quase cheio. Ficamos imaginando quantos litros de água havia naquele barril. Chegamos ao consenso de que deveria ser de 50 litros, mas não sabíamos até que ponto ele estava cheio. Zé Colmeia, o nosso especialista em doenças, falou que, para que a ação fosse efetiva, deveríamos colocar 10 vidrinhos de laxante. Com este cálculo em mente, precisaríamos de mais cinco vidros.
Mas, como qualquer plano maquiavélico, era preciso planejar corretamente. Não gostaríamos de ser prejudicados. Juntamos o dinheiro necessário para os cinco vidros, mas não podíamos comprar na farmácia do nosso bairro. Seu Antunes, o farmacêutico, provavelmente estaria na estreia do circo, com a sua família, e se o apresentador falasse algo sobre o sumiço do domador, estaríamos fritos.
Com o dinheiro na mão, de bicicletas, tivemos de correr contra o tempo. Visitar cinco farmácias em cinco bairros antes do anoitecer.
“E se fizéssemos cinco grupos, para cada um ir a uma farmácia, assim economizaríamos tempo”, sugeriu Barney.
“Boa ideia, Barney. Mas não se esqueçam, peçam o mais forte. Turbo de preferência. Se o farmacêutico perguntar digam que seu pai está há uma semana sem ir ao banheiro e ele indicará o melhor”, complementei. “Nos encontramos aqui, em uma hora e meia. Combinado?”, emendei já saindo com a bicicleta na companhia do Brizola.
Em duas horas, estávamos reunidos embaixo da nossa árvore. Tínhamos 10 vidrinhos de laxantes. Era munição suficiente para desprender qualquer intestino grosso, e o efeito ficaria no sistema por 12 horas. Bastavam algumas gotas num copo d’água.
Zé Colmeia sugeriu que colocássemos o laxante por volta das quatro da tarde, pois assim teríamos uma janela de três horas até a estreia, que seria às sete da noite. Aí surgiu outro problema, como colocar os 10 vidros de laxante sem ser notado, em plena tarde do dia da estreia?
Deixamos para pensar numa solução na manhã seguinte. Cada um deveria trazer uma ideia para o próximo encontro. A melhor seria executada.
Ao raiar do dia estávamos reunidos para discutir a melhor ideia. Barnabé sugeriu que cada um fosse, individualmente, despejar o seu vidrinho. Essa sugestão logo foi descartada. O movimento de 10 moleques indo e voltando seria descoberto facilmente. Ficamos três horas sem achar uma solução. Faltavam uns 40 minutos para a janela de tempo que o Zé Colmeia havia sugerido.
“Já sei! Vamos despejar todos os vidros numa caneca e assim seria preciso apenas uma pessoa para despejar no barril”, sugeriu Baryshnikov. A ideia foi aceita prontamente. Só tinha um problema, quem seria o voluntário? Tínhamos apenas 15 minutos e precisávamos decidir.
Gastamos 10 minutos em silêncio.
“Eu vou!”, disse Júlio Verne, deixando todos surpresos com a sua coragem.
“Está aí um moleque macho. Eu dou valor”, falei tentando amenizar a tensão.
“Já sei. Vamos do outro lado do circo, simulamos uma briga de turma, aí todos irão ver o que está acontecendo e o Júlio Verne não terá nenhum problema”, sugeriu Delfin. Eu realmente estava orgulhoso daquela turma. Cada um encontrando a solução adequada para os nossos obstáculos.
Como combinado, fomos ao outro lado do circo e arrumamos uma confusão. Em poucos minutos veio a turma do “deixa dilso”, “pare com ilso”, e “vou chamar o Seu Wilson”. O dono do circo interveio e acabou distribuindo ingressos grátis para todos nós. Ficamos aliviados quando vimos o Júlio Verne na fila para receber o ingresso com um sorriso maroto.
“Em quanto tempo você acha que fará efeito, Zé Colmeia?”, perguntei sem disfarçar a ansiedade.
“Basta que ele tome um copo, Coelho. O efeito começará, aproximadamente, em duas horas.”, respondeu o Zé. Decidimos ir para casa, nos arrumarmos. Marcamos o encontro uma hora antes da estreia. Queríamos ser os primeiros da fila.
Não deu uma hora e estávamos todos lá, todos com gel nos cabelos e com as camisas com gola asa delta e calça de tergal sem cinta. Cada um queria abafar na estreia. Embora o nosso objetivo naquele dia não fosse impressionar nenhum rabo de saia. Queríamos ver a justiça sendo feita. Éramos contra qualquer maldade feita com os animais.
Às sete em ponto, o circo já estava lotado. Várias sirigaitas dando mole, mas o nosso foco era outro. O espetáculo iniciou com 20 minutos de atraso, deixando toda a plateia impaciente. Nós não tínhamos pressa. Só queríamos ver o momento em que o domador fosse chamado.
O apresentador deu boas vindas e cortou o discurso de abertura para sair rapidamente do palco.
Nisso, entrou o anão e o velhinho vestidos de palhaços. E o Batatinha rapidamente falou: “eu sabia que eles eram palhaços”. Eles não ficaram muito tempo e já saíram do palco. Reinou o silêncio por alguns minutos. O apresentador apareceu novamente, anunciando o mágico.
Ele fez apenas um coelho desaparecer e, quando nos demos conta, ele também havia desaparecido do palco inesperadamente. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Foi anunciado os Irmãos Áurea, os trapezistas voadores. Depois de algumas acrobacias, um por um foi se jogando na rede de segurança e saindo sem ao menos esperar os aplausos da plateia. Naquele momento eu senti que alguma coisa estava errada. Perguntei para a gangue: “Nestes dias que vocês estavam aqui, vocês viram alguém mais tomar da água do barril?” Ninguém tinha notado. Era compreensível, pois as nossas atenções eram com o domador, o mesmo que havia ameaçado soltar os leões no Batatinha quando este perguntou se ele dava carne de cachorro para os animais.
Logo apareceu o apresentador anunciando os elefantes adestrados. Eles eram comandados por uma mulher que usava um maiô todo cintilante. Mas o que mais chamou a atenção foram os três elefantes andando em fila indiana e “cagando” água. A mulher teve que se retirar rapidamente deixando os elefantes aos cuidados dos ajudantes.
Os palhaços foram chamados novamente, mas os movimentos do anão mostravam claramente que alguma coisa estava errada com os dois. Eles ameaçavam sair do palco, mas paravam no caminho como que esperando alguma coisa passar. Esses movimentos eram realizados involuntariamente durante a apresentação.
Nós olhamos uns para os outros e, aos poucos, começamos a compreender que aquela água não era tomada somente pelo domador, mas por todos. Falando em domador, finalmente ele apareceu com os dois leões velhos. Os leões acabaram sujando o palco, assim como os elefantes e os macacos. A cada animal que entrava os ajudantes tinham que entrar com uns vasões e limpar a lambança que estava acontecendo. O domador tentava inutilmente dar algum comando para os leões. Eles estavam mais interessados em achar um canto para aliviar a pressão que, provavelmente, o laxante estava fazendo. Acabou que, o domador teve que sair deixando os leões urrando. O som daquele urro era diferente dos urros que eram dados no primeiro dia que eles chegaram.
“Cara, acho que aquele barril de água, era para todos, inclusive para os animais”, comentou Batatinha. Ele havia descoberto, com um atraso de 20 minutos, o que todos nós já sabíamos.
O que, no início, era engraçado, acabou tirando a plateia do sério. Vaias começaram a ser ouvidas, pipocas eram jogadas em direção ao palco. E nós, os responsáveis pela epidemia líquida, estávamos preocupados com a possiblidade de descobrirem o que tinha acontecido.
“E agora, Zé Colmeia? O que vamos fazer se descobrirem?”, perguntou Barnabé.
“Calma, Barnabé! Calma. O plano foi executado perfeitamente. Ninguém irá descobrir a não ser que algum de nós tome da água e mije para trás e nos alcaguete.” Sabíamos que era necessário fazer um pacto de honra. Cada um cuspiu na palma da mão para selar o pacto num aperto coletivo. Isso trouxe certo alívio para todos nós. O apresentador anunciou o globo da morte. Para nós, era a principal atração. Torcemos para que o motoqueiro não tivesse tomado da água. Ele começou a dar umas voltas pelo globo até pegar embalo para dar a volta completa.
Quando finalmente engatou, eu fiquei aliviado pois ele não tinha dado nenhum sinal de fraqueza. A segunda volta foi feita já baixando a velocidade, fazendo a moto cair no Globo, para aflição da plateia. O motoqueiro se levantou de debaixo da moto e saiu correndo do Globo para a parte de trás do palco. Neste momento, o público, sem entender o que estava acontecendo, começou a vaiar e a se retirar do circo.
Aos 10 anos de idade, eu nunca tinha visto uma estreia tão desastrosa. O que era para ser um castigo para o domador, acabou tendo consequências para o circo inteiro.
Todos estavam com diarreia. Desde o anão, até o elefante. Não escapou ninguém. O apresentador pediu desculpa e encerrou o show. Cada um foi para casa com a consciência pesada e um aperto no peito, com medo que fôssemos descobertos. No sábado, acabamos dormindo até mais tarde e nos encontramos no campo de futebol para não criar suspeitas. Ficamos discutindo o que havia acontecido na noite anterior. O que era para ser um castigo para uma pessoa, acabou virando uma tragédia. No bairro o assunto era um: O espetáculo tinha sido literalmente uma diarreia.
Resolvemos ir ao circo para ver como estava o clima. Quando chegamos lá levamos outro susto. Eles já haviam levantado acampamento e não tinha mais ninguém. A única coisa que ficou foi o barril de água. Todos nós sabíamos que eles deixaram aquele barril para mostrar que haviam descoberto o nosso plano infalível.
“Zé Colmeia, será que exageramos na dose?”, perguntei.
“Coelho, eu acho que a dose foi para elefante”, respondeu ele, arrancando risadas. A partir dali, esquecemos as preocupações e resolvemos voltar com a nossa programação normal de férias.
“Turma, turma? Ficaram sabendo que a Saúde, interditou o açougue do Seu Jorge? Encontraram um matador clandestino no porão da casa dele”, anunciou Batatinha.
“Eu sabia!”, respondi imediatamente. “Precisamos dar uma lição no Seu Jorge”, sugeri em seguida, convocando uma reunião de emergência. Ela foi aceita imediatamente.
A caminho da reunião, Barney soltou a pérola: “Será que deu tempo daquela moça dos Elefantes, tirar o maiô?”
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Sobre o autor
Escritor, redator, podcaster, paulistano criado em Curitiba começou a cultivar o interesse pela escrita aos 14 anos. Escreveu uma coluna semanal para um jornal comunitário brasileiro nos EUA e se tornou editor de um periódico independente. De Pittsburgh realizou o Premio Podcast no Brasil em 2008/2009. Escreveu um livro sobre técnicas de filmagem com iPhone e iPad e o romance: “Tudo que tenho de fazer é sonhar“. Atualmente não consegue equilibrar o tempo gasto com Animação 3D, filmagens com smartphone, pilotar Drones e criar artes com Inteligência Artificial.