O culto à dor e a farsa da autenticidade sentimental
Quando uma civilização perde o senso do trágico — não a histeria, que abunda, mas o verdadeiro senso trágico — ela se apega aos escombros emocionais como quem tenta fazer de cacos um espelho. Eis a tragédia de Joan Didion, mulher de talento raro, cuja grandeza final foi confundida com a mais vulgar forma de consagração: a canonização pop.
Didion nasceu cult, diz o jornalista, e morreu pop. O que isso quer dizer senão que aquilo que era substância virou performance, e que o estilo contido, rigoroso, quase impiedoso, de seus primeiros textos foi trocado por uma exposição controlada — mas ainda assim exposição — da dor privada? A decadência começa aí: quando o sofrimento deixa de ser uma escola interior e vira um espetáculo para almas mendicantes de identificação.
É verdade, “O ano do pensamento mágico” foi um grande livro. Mas o foi não por causa da dor, e sim apesar dela. Foi grande porque, num tempo em que se romantiza o sofrimento como se ele fosse moeda de prestígio, Didion recusou o sentimentalismo, recusou a linguagem da autoajuda, recusou a pornografia emocional — o que não é pouco num mundo onde a virtude mais elevada parece ser a capacidade de lacrimejar em público.
Mas esse triunfo interior já era uma antecipação da derrota. O público que a acolheu — aquele mesmo que nunca leu “O Álbum Branco” ou “Slouching Towards Bethlehem” — não buscava compreensão; buscava catarse. E Didion, talvez contra sua vontade, acabou se deixando filmar, documentar, vender. Foi fotografada pela Céline como ícone fashion. E aí a intelectual virou celebridade, o luto virou capital simbólico, e a escritora se dissolveu na efígie.
O recém-lançado “Notes to John” talvez seja o ato final — ou penúltimo, nunca se sabe — de uma espécie de autópsia escrita em vida. Trata-se de transcrições das sessões de análise que Didion manteve entre 1999 e 2002 com Roger MacKinnon. A rigor, não é um livro: é um prontuário existencial, um relatório de alma em decomposição que só se torna obra por aquilo que revela, e mais ainda por aquilo que finge não revelar.
A estrutura do texto — “eu disse”, “ele disse” — é seca, quase clínica, mas isso só intensifica a sensação de que entramos numa zona de intimidade onde não fomos convidados. E no entanto estamos ali, lendo. Isso diz mais sobre nós do que sobre ela. Pois hoje ninguém lê para pensar. Lê-se para sentir. A sensibilidade, que deveria ser consequência do pensamento, virou seu substituto barato.
As revelações são muitas, e todas profundamente humanas. Didion não era uma santa: era uma mãe culpada, uma mulher em fuga, uma profissional que transformava o trabalho em escudo contra o afeto. Em sua relação com a filha adotiva, Quintana, vê-se claramente a falência de uma geração que acreditou poder substituir os laços naturais por uma arquitetura emocional planejada. A adoção, nesse sentido, não foi um gesto de amor cristão, mas uma tentativa inconsciente de moldar o destino — e fracassou.
E no fracasso, Didion fez o que sempre fez: escreveu. Mas o fez com uma frieza que assusta e com uma lucidez que falta a muitos dos que hoje se dizem autores de “literatura do eu”. Ali, o “eu” não é bandeira identitária, é problema metafísico. O “eu” que escreve é o mesmo que foge. A escrita não é libertação — é prisão. É nela que Didion se esconde para não amar demais, para não sofrer demais, para não estar “ali emocionalmente”.
Mas ao publicar esses registros — ou ao permitir, tacitamente, que fossem publicados — não estaria Didion finalmente cedendo à tentação do espetáculo? A resposta não é fácil. O controle obsessivo sobre sua imagem, seus arquivos, suas biografias, revela o desejo de moldar até o legado. Mas isso é um paradoxo: quem tenta controlar o próprio mito, acaba engolido por ele.
O que se vê, portanto, é uma mulher de uma lucidez trágica sendo empurrada para o panteão das santas sentimentais. E a intelectual rigorosa sendo vendida a 27 mil dólares na forma de óculos escuros. Isso é o fim. Ou melhor, isso é o fim da cultura como cultura — pois quando a reflexão vira decoração, o que resta é a estética do sofrimento.
Didion sabia disso. Ela sabia que sua dor seria consumida. Sabia que sua filha se tornaria personagem. Sabia que o mundo, que ignora os vivos, ama os mortos bem editados. Sabia — e talvez tenha escrito, mesmo assim. É esse o peso trágico de sua última obra: não sua dor, mas o fato de saber que, ao publicá-la, seria canonizada por aquilo que mais desprezava.
Sobre o autor
José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.