Crítica: Ainda estou aqui

A frase “Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do”, que emerge de forma emblemática na canção “Space Oddity” de David Bowie, não é apenas um verso melódico: é uma reflexão poderosa sobre a fragilidade humana frente à imensidão do universo e aos abismos emocionais que habitam nossa existência. Longe de ser apenas um lamento espacial, a frase torna-se um ponto de partida para examinar questões que transcendem a esfera pessoal e alcançam âmbitos sociais, históricos e políticos. Quando revisitada no contexto do livro “Ainda Estou Aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, a música de Bowie ganha novas camadas de significado, convergindo em um potente símbolo do desamparo humano e da resistência diante da violência e do silêncio impostos por sistemas opressores.

Na canção, Major Tom é um astronauta cuja jornada começa com excitação e culmina em isolamento absoluto. A contagem regressiva, carregada de esperança, transforma-se em solidão à medida que ele se desconecta da Terra e, por fim, da humanidade. De forma semelhante, Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar brasileira, também embarca em uma jornada que o afasta do mundo tangível. Seu desaparecimento não foi apenas físico, mas simbólico, refletindo a desconexão brutal entre o Estado e os direitos humanos. Enquanto Major Tom se perde no cosmos, Rubens Paiva é engolido pelo abismo de uma ditadura que apagava seus opositores com frieza calculada, deixando atrás um rastro de desamparo e saudade.

O verso de Bowie também pode ser lido através da lente da dualidade linguística: em inglês, “blue” significa tanto “azul” quanto “triste”. Essa ambiguidade traduz o sentimento de melancolia que permeia a experiência de Eunice Paiva, retratada no livro de seu filho. Viúva de um desaparecido político, Eunice enfrentou um vazio que transcendeu a perda pessoal, carregando consigo o peso da incerteza e da negação estatal por décadas. “A Terra é triste, e não há nada que eu possa fazer” parece ecoar a resignação de uma sociedade que, até hoje, convive com as marcas profundas de sua história não resolvida.

O desaparecimento de Rubens Paiva é uma história de silêncio e apagamento, mas é também um testamento à resiliência. Eunice Paiva, mesmo diante de um Estado que se recusava a reconhecer a morte de seu marido, tornou-se uma figura de resistência e dignidade. Ao longo de décadas, ela cuidou dos filhos, lutou pela verdade e sustentou a esperança, mesmo quando a realidade era esmagadora. Essa narrativa reflete a capacidade humana de resistir ao desespero, mesmo quando a “Terra” – ou o contexto social – se torna inóspita e hostil.

O cenário político da ditadura militar no Brasil adiciona camadas de complexidade ao tema do desamparo. A história de Rubens Paiva é um dos muitos exemplos de como regimes autoritários instrumentalizam o silêncio como arma de controle. Os desaparecimentos forçados, a censura e a tortura não eram apenas práticas isoladas, mas parte de uma estratégia mais ampla de desumanização e desmobilização social. Em “Ainda Estou Aqui”, Marcelo Rubens Paiva descreve não apenas a ausência física do pai, mas também a ausência de justiça e accountability, que perpetua o sentimento de vazio e tristeza coletiva.

A figura de Major Tom também oferece uma análise metafórica da condição humana em tempos de incerteza. Sua última mensagem – “Digam à minha mulher que eu a amo muito, ela sabe disso” – ressoa com as palavras não ditas de Rubens Paiva a Eunice. Esse paralelo evidencia como o amor e a conexão humana são os últimos bastiões de significado diante do caos e da desintegração. Mesmo na iminência do desaparecimento – seja ele literal ou figurativo –, essas palavras representam uma tentativa de resistir à dissolução completa do eu.

O Alzheimer, que acometeu Eunice Paiva nos últimos anos de vida, é uma dimensão adicional de esquecimento. Se a ditadura militar buscou apagar memórias por meio da violência, a doença fez isso de maneira biológica, corroendo as lembranças e a identidade de Eunice. Essa sobreposição de apagamentos – o histórico e o pessoal – sublinha a fragilidade da memória, mas também sua importância como ferramenta de resistência. Ao escrever “Ainda Estou Aqui”, Marcelo Rubens Paiva não apenas resgata a história de sua família, mas também desafia o silêncio imposto pela ditadura e pela própria doença de sua mãe.

O Brasil, em si, é um espaço azul e triste na narrativa. Em 2018, quando Eunice Paiva faleceu, o País vivia um momento de regressão política e social, simbolizado pela eleição de um presidente abertamente apologista da ditadura militar. Esse retrocesso é uma lembrança dolorosa de que os fantasmas do passado ainda assombram o presente. Assim como Major Tom se perde no espaço, o Brasil parece, muitas vezes, perdido em um ciclo de negligência histórica e negação da justiça. A frase “Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do” torna-se, nesse contexto, uma elegia para um país incapaz de confrontar plenamente seu passado.

Ainda assim, a história de Eunice e Marcelo Paiva também é uma história de esperança. Mesmo diante de perdas incomensuráveis, eles persistiram. Eunice, com seu senso de realidade e dignidade, é uma lição de resiliência, enquanto Marcelo, ao transformar sua dor em narrativa, reitera o poder da arte como um meio de resistência e redenção. Em “Ainda Estou Aqui”, o ato de lembrar torna-se um ato de luta, um desafio ao silêncio imposto pela ditadura e pela própria fragilidade da mente.

A música de Bowie, então, é recontextualizada como um hino universal de melancolia e resistência. Ela encapsula o sentimento de desamparo – seja ele individual ou coletivo – e reafirma a necessidade de encontrar significado mesmo diante do vazio. Major Tom, Eunice Paiva e Rubens Paiva compartilham uma condição comum: o enfrentamento do desconhecido, seja o espaço sideral, a repressão política ou o esquecimento. E, apesar de tudo, é através do amor, da memória e da narrativa que eles continuam presentes, desafiando o “blue” com sua dignidade e humanidade.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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