Da cor do Racismo Espanhol 2: a luta por justiça continua…

A continuação do relato da professora Stella…

Uma professora espanhola viaja até o Brasil para visitar a irmã, também espanhola e casada com um brasileiro. Ocorre que, na chegada à Bahia, mesmo preenchendo todos os requisitos legalmente exigidos para a entrada no País, foi barrada no aeroporto de Salvador. Foram três dias de humilhações e constrangimentos contínuos… NÃO, a história não é essa, foi uma professora baiana indo visitar a irmã na Espanha. Então, o olhar é diferente?

Recordo-me de uma fala do filme Ó Pai Ó, dita pela personagem de Roque, interpretado pelo ator Lázaro Ramos em uma conversa com Boca, vivido por Wagner Moura:

“Suportar é a lei da minha raça, Boca. Eu sou, sim, negro. Eu sou negro, sim. Mas por um acaso negro não tem olhos, Boca? Hein? Negro não tem mão…, não tem sentido Boca? Hein? Não come da mesma comida? Não sofre das mesmas doenças, Boca? Hein? Não precisa dos mesmos remédios? Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual um branco, Boca? Hein? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual, meu irmão? Hein? Quando vocês fazem graça, a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente, a gente não morre também? Pois se a gente é igual em tudo, também nisso vamos ser […]”


Bem, como prometido, estou escrevendo mais um relato sobre os três dias que passei no aeroporto de Madri e os desdobramentos até aqui. Falo, agora ,sobre fatos que eu não estava preparada emocionalmente para expor e nem a minha família pronta para ouvir, mas lutar envolve enfrentar a dor por uma causa maior, que nenhum outro brasileiro seja exposto às mesmas situações degradantes, racistas e vexatórias a que fui submetida.

DIA 26/12/2018

Fui condenada antes mesmo de ser ouvida, passei por três entrevistas, nas quais nada do que falava era verificado. Chorei muito, muito, muito. Nunca havia sido submetida a uma situação de racismo tão explícita e cruel. Lembro-me de não ter conseguido comer direito e então fui dormir. Não sei explicar a que horas exatamente acordei (não tinha celular, computador e não portava relógio de pulso, tudo me fora tomado), mas a dor de cabeça era tão forte que não conseguia abrir os olhos.

Levantei e dirigi-me à porta, onde solicitei um analgésico, que estava em minha bolsa, a um policial e fui informada, por este, que teria que passar por médicos para tomar qualquer remédio. Eu disse que aceitava e aguardei sentada em uma cadeira. Algum tempo passou e eu não fui levada a médico nenhum. A cabeça parecia ia explodir. Então, mais uma vez me dirigi ao policial, implorando pelo amor de Deus que me levasse ao médico ou me deixasse tomar o remédio, e foi aí que ele me fez algumas perguntas e, enfim, me deixou tomar um comprimido de Dipirona.

Estavam na sala: uma senhora de pelo menos 70 anos, outra que aparentava ter uns 50 anos, um senhor também por volta dos 50, uma jovem que deveria ter uns 20 anos e um homem relativamente jovem com uma criança, um menino. Recebi muito conforto dessas duas senhoras que estavam o tempo inteiro com uma Bíblia na mão e repetiam palavras sobre o amor de Deus, tentando acalentar minha alma.

Dia 27/12/2018

Cada dia era uma humilhação maior. Na verdade, não existe medida para dia pior, todos foram terríveis. Mas, especialmente neste dia, não fui tratada como um ser humano, alguém dotada de dignidade.

A policial da segunda entrevista chegou até a sala de convivência dos policiais e chamou pelo meu nome. Nunca esquecerei aquele o olhar de deboche daquela policial e a indagação: “você recorreu, não foi?”… Seus olhos não disfarçaram o tom de zombaria, visível mal estar e escárnio. Enfim, ela entregou-me uma ordem judicial, na qual me concederam o direito de recorrer à justiça, no prazo de três dias úteis.

Eram três refeições por dia: café da manhã, almoço e jantar. Não posso reclamar da qualidade da comida, realmente não era ruim. O almoço chegava sempre após às 15 horas, uma pessoa era responsável pela entrega feita na sala em que fiquei. A tristeza só aumentava, só conseguia chorar, principalmente porque acabei sozinha na sala. As outras seis pessoas ou tinham pedido asilo político ou tinham sido mandadas de volta para seus respectivos países.

O entregador do restaurante entrou na sala, colocou três bandejas de comida em cima da mesa, as garrafas de água mineral de 500 ml e virou, em cima da mesa, uma caixa contendo pães e maçãs. As maçãs e os pães rolaram sobre as mesas coladas umas às outras, e eu ali, estarrecida com tamanha humilhação, a comida foi jogada como se fosse para alimentar animais e não pessoas. A trabalhadora social que presenciou a cena e estava visivelmente constrangida arrumou os pães em um saco, colocou um pão, uma maçã e um guardanapo em cima de uma das bandejas e posicionou na mesa. A essa altura eu não podia mais conter as lágrimas.

Após beliscar um pouco e chorar ainda mais, fui deitar. Algum tempo depois chegou um jovem do Peru que passaria pela entrevista e no dia 28 seria mandado de volta para seu país.

Dia 28/12/2018

Acordei no dia 28 ouvindo muitas vozes. Dormia sempre de porta aberta. Quando virei-me para a sala, ainda da cama, vi muita gente, acredito que eram mais de 20 pessoas na sala. Mulheres, homens e crianças, todos vindos de Honduras, exceto uma brasileira que estava vindo da Romênia. A presença de outra brasileira naquela sala fez meu coração apertar muito mais, eu temia também por ela.

O café da manhã só chegou após as 11 horas, eu olhava aquelas três crianças (3 meninas lindas, a mais velha não deveria ter mais que 5 ou 6 anos). Existe uma sala de brinquedos que nunca vi aberta, as crianças ali são tratadas como adultos em miniaturas.

As pessoas foram levadas aos poucos para as entrevistas, todos solicitaram asilo político e se tornaram refugiados, exceto uma mulher (que tinha sempre uma palavra de amor e de esperança para todos). Alguns pediram asilo no dia 28, outros no dia 29.

Hora do almoço, e como era de costume, um policial entrou junto com o entregador, escolheu algumas bandejas e levou. Um jovem de Honduras ficou sem comida, ele estava no quarto quando o entregador chegou. Lembro do seu olhar de tristeza ao perceber que ficaria com fome, então a brasileira (vou preservar o seu nome), abriu a porta de vidro e pediu ao policial que devolvesse uma bandeja, porque tinha gente com fome na sala e devolveram uma bandeja e o jovem enfim pôde almoçar.

Por várias vezes a cena se repetiu, um policial seguia o entregador, escolhia as bandejas de melhor aparência e as levava, só então poderíamos pegar a nossa e iniciar a refeição.

Mais tarde fui chamada para uma entrevista, as pessoas da sala que conheciam a minha história vibraram de felicidade, eu peguei os documentos e segui para o local. Chegando lá fui informada que não se tratava de uma entrevista, era para me entregar uma ordem judicial para que eu voltasse no dia seguinte.

O policial que entregou o documento foi o mesmo da entrevista número três. Naquele momento, ele não conseguia esconder a felicidade por ter vencido. Eu não entendi algumas coisas e ele buscou alguém que falasse um pouco de português (também não escondeu a raiva quando percebeu que eu não entendia tudo o que dizia). Após assinar o papel, eu o olhei nos olhos e, com a voz embargada, falei o que estava vivendo ali: racismo, xenofobia contra latinos, tudo aquilo era porque sou mulher negra, solteira, latina, viajando sozinha.

Foi um misto de tristeza por não poder conhecer a nova família da minha irmã, e de felicidade porque enfim sairia daquele inferno.

Presenciei mãe e filhas receberem lençóis para se enxugarem porque, de acordo com a trabalhadora social, não havia mais toalhas limpas. Lembro-me dos lábios roxos de frio de uma das meninas, e eu esfregando o lençol nela para tentar aquecê-la (é muito difícil não ser solidário em uma situação como aquela). Fui solidária e recebi atos de solidariedade de todos que passaram por ali. O povo latino não tem coração de pedra, acho que o sorriso e a palavra de conforto foi a representação primaz do nosso povo ali, todos foram capazes de esquecer um pouco da sua dor para ofertar acalento a outrem…empatia.

Dia 29/12/2018

Já não tinha toalha de banho e também me enxuguei com um lençol, que me foi dado pela trabalhadora social. Agora, além de orelhão que dava choque, comida jogada na mesa, ser humilhada para ter acesso aos meus remédios ou ao desodorante, água que não estava suficientemente aquecida, também tive que tomar banho e me enxugar com um lençol.

Como era de costume, chamei a trabalhadora social e disse que precisava usar desodorante, ela me pediu para aguardar, porque iria transmitir o pedido a um policial e esperar para ver se seria acatado ou não. Após um tempo, a trabalhadora social abriu a porta de vidro e chamo. A polícia havia autorizado o uso do desodorante, ela perguntou quem iria primeiro, afinal, outra brasileira também havia solicitado. Como eu voltaria naquela tarde, minha patrícia deixou que eu fosse primeiro.

Quando cheguei à sala fiz o de sempre, apontei a mochila, que foi colocada pela policial em cima da mesa, abri e peguei um pote pequeno de desodorante em creme (não deveria ter mais que 10 ou 15 gramas dentro do pote). A policial se virou para mim gritando e gesticulando muito: MENTIROSA, MENTIROSA, você disse que precisava pegar um número no celular e você está usando desodorante, MENTIROSA, MENTIROSA… Naquele momento eu achei que seria agredida fisicamente pela polícia espanhola. Eu me virei para a assistente social que presenciou tudo e perguntei: a que horas eu pedi para anotar algum número de telefone? Então a trabalhadora social, visivelmente assustada respondeu: não, você pediu apenas para usar desodorante.

Voltei para a sala com o coração disparado, agora não sentia mais medo ou tristeza, era raiva, por ser submetida a uma situação tão absurda.

Já passava das 14 horas, tínhamos fome. Muitos tinham se tornado refugiados e três mulheres do Peru tinham sido barradas, estavam aguardando a entrevista. Éramos seis mulheres na sala. Eu vi minha mochila na mão de um policial e então meu coração disparou, eu sairia daquele inferno, abracei e comemorei muito com as meninas. Um policial me chamou, eu usei meu perfume, calcei meu sapato de salto que estava na mochila, usei um pouco de hidratante nos pés e nas mãos e me declarei pronta. As meninas me olhavam da parede de vidro jogando beijos e vibrando de felicidade, eu enfim voltaria para casa.

Peguei minha mochila, minha mala de mão e acompanhei os policiais. Era muita felicidade, só felicidade. Quando descemos do elevador e demos poucos passos chegamos à pista de pouso com muitos aviões, o policial apontou e disse: “o avião é aquele ali perto, mas vamos nesse carro” (viatura). Eles ainda conseguiriam me humilhar mais. Entrei na viatura, a distância era muito pequena, mas os policiais me deixaram exposta na viatura frente a todos os funcionários que ali estavam, a essa altura eu não tinha mais lágrimas, apenas lembrava das palavras de uma das tantas pessoas que passaram por ali: “eles se alimentam de nossas lágrimas, de nossa dor, conte até 3 e não chore”, e assim eu fiz. Entrei no avião de cabeça erguida, porque ali eu era vítima e não culpada.

No avião me senti sendo tratada de forma diferente pelas aeromoças, por diversas vezes. Mais uma vez fui julgada e dessa vez não fui ouvida, já condenada de vez.

Quando achei que tudo havia acabado, recebi minha mala com o zíper arrancado e amarrado por cordas, isso depois de quase duas horas esperando a bagagem na esteira. Perdi o ônibus e dormi em um hotel próximo à rodoviária, não tinha condições psicológicas de explicar a nenhuma prima ou tia, residentes em Salvador, tantas atrocidades. Eu só precisava dormir.

30/12/2018

Peguei um táxi para a rodoviária. Humilhada, com a mala amarrada por uma corda e as roupas à mostra, no terminal rodoviário de Salvador todos me olhavam. Parecia que as coisas da mala pulariam para fora, mas eu, de cabeça baixa, queria apenas voltar para casa.

Nota:

Onde estava o Consulado do Brasil na Espanha que não atendeu às nossas ligações?

Eu poderia ter sido tratada de forma justa e humana se o Consulado tivesse atendido alguma ligação. O Consulado não está lá para se envolver em decisões do Governo da Espanha, mas tem o papel de zelar pelo bem estar do brasileiro quando necessário, uma vez que é quem oficialmente pode nos proteger quando estivermos fora do Brasil. O telefone do consulado deve funcionar 24 horas por dia, mas nossas ligações não foram atendidas.

Fui recebida pelo Cônsul da Espanha em Salvador e indaguei o motivo de ser colocada em uma viatura (visto que eu não estava sendo deportada ou extraditada) e fui informada que é praxe, ou seja, se você não é criminoso, vai ter o mesmo tratamento de um criminoso na Espanha. Se o Brasil colocar um cidadão espanhol em uma viatura e o expor a um constrangimento desnecessário não terá problema, será visto como procedimento padrão?

A verdade é que eu tenho muitas marcas e muitas lembranças dos dias inglórios que vivi em Barajas, ainda aguardo muitas respostas.

Submeter um brasileiro a situações degradantes, vexatórias, racistas, que violam os direitos humanos é tolerável? Qual a cor necessária para a garantia dos direitos humanos? Meu passaporte brasileiro é inferior a um passaporte espanhol?

Por: Stella da Silva Lima

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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