Pode me chamar de seu Zé

Durante aula recente, uma aluna perguntou: “o seu primeiro nome é José?”, respondi que sim. Outra aluna ficou empolgada e disse: “Ah, que legal! Quando o senhor estiver velhinho, poderemos te chamar de seu José.”

Fiquei pensando nisso quando resolvi comprar cordinhas para as pernas dos óculos. Tentei usar multifocal por um tempo, mas não me adaptei. Depois de dividir em dois pares de óculos (um para leitura e outra para o uso corriqueiro), comecei a ter dificuldade em manter sempre os dois pares à mão. A cordinha pareceu resolver o problema.

As noites mal dormidas causaram dores no pescoço e nas costas. Para resolver o problema, apliquei um daqueles adesivos com cheiro de cânfora às costas. A fala da aluna voltou à memória. Estou sofrendo de presbiopia, usando óculos com cordinha e cheirando a cânfora. O que falta para que eu seja chamado de Seu Zé?

Os anos se passaram enquanto eu dormia e quem eu queria bem me esquecia.” Os versos da canção Não Vou Me Adaptar, escrita por Nando Reis e Arnaldo Antunes, estavam na boca dos jovens em meados da década de 1980. A canção tratava da perenidade da vida, da velocidade com que as coisas acontecem e as pessoas envelhecem. Tratava, sobretudo, da dificuldade que temos em aceitar que a juventude se esvai como água que tentamos agarrar com as mãos.

Até os 18 anos, tudo parece possível. Para alguns, a realidade se impõe bem antes. Mas para os abençoados que têm o suporte dos pais até o início da maioridade, o início da vida adulta é um amontoado de frustrações. O mercado de trabalho não vai te tratar como sua família te tratou, os boletos são implacáveis. Aquela pessoa que desperta seu interesse pode não corresponder às suas investidas. Você logo descobrirá que existe muita gente mais bonita que você, mais inteligente que você, mais bem preparada que você.

É muito comum se achar esperto porque ainda é jovem, mas a maior parte das suas ideias não são suas. Resultam daquilo que pode ser chamado, grosso modo, de agenda setting, uma teoria formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw na década de 1970, que propõe a ideia de que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados com maior destaque na cobertura jornalística.

Resumindo, os movimentos sociais trabalham em prol de uma revolução cultural. Os jovens são diretamente afetados por esse trabalho (para o bem e para o mal) e, consequentemente se acham mais evoluídos por causa disso. Que esses mesmos jovens cheguem aos 30 anos completamente imaturos, pouco importa.

Nós, os velhos (ao menos aqueles que têm bom senso), percebemos com tristeza que o nosso tempo se esvai. Não temos mais a mesma saúde, a mesma disposição ou a mesma beleza. Não amadurecemos nem a metade do que almejávamos, não realizamos nem um terço das nossas ambições, não experienciamos quase nada do que tínhamos em mente. Mas cá estamos, com cheiro de cânfora, usando multifocal e sendo apelidados de seu Zé e dona Maria.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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