Seu Silva

01:37 am

Como nas noites anteriores, eu estava navegando pela internet e procurando uma maneira de ganhar dinheiro em casa, sem precisar acordar cedo, fazer marmita e enfrentar o busão. Olhei para o copo ao lado do meu laptop e vi que estava vazio. Meu laptop, por outro lado, já não tinha mais espaço para salvar uma única foto. Eu havia dado o último gole no vinho, que já tinha se transformado em vinagre, consequência de eu não ter fechado o garrafão.  Aos meus pés, Gordo – meu cachorro buldogue – dormia o sono dos justos. Sem preocupação para pagar aluguel ou a conta da internet, roncava a ponto de causar inveja.

Por falar em aluguel, precisava acordar mais cedo e cair fora. Assim eu não daria de cara com seu Augusto, o proprietário da quitinete em que moro. Ele certamente me cobraria os dois meses de aluguel atrasados. O dinheiro que eu tinha, resolvi pagar a internet, pois entre ser despejado e ficar online, eu conhecia as minhas prioridades. Recebi a última parcela do seguro desemprego, que deu para pagar algumas contas e comprar um garrafão de vinho do mais barato, mas a água já estava batendo na bunda.

Meu último emprego foi como auxiliar administrativo de uma pequena firma de contabilidade. Fui mandando embora por contenção de despesas. Era o empurrão que eu precisava para mudar os rumos da minha vida. Se não fosse essa demissão, eu não teria conhecido algumas pessoas na fila do seguro desemprego.

“Pense, Seu Silva, pense. Você precisa descobrir uma maneira de ganhar dinheiro com a internet”. Esse era o meu mantra enquanto visitava os blogs com dicas de ganhar dinheiro que apareciam nos resultados de busca do Google. Tudo que eu lia eram obviedades. Eu precisava achar algo que ninguém tivesse pensado.

Sem o vinagre, digo, sem o vinho, era impossível pensar. Meu único conhecimento na internet era no uso de plataformas como Facebook e Instagram, aquela rede social para colocar fotos do que você está comendo. Como ultimamente o meu cardápio se restringia ao miojo, resolvi dar uma pausa nas fotos.  Em ambas as redes eu tinha poucos seguidores, mas sabia do meu potencial. Era questão de tempo até que as poucas dezenas que me seguiam virassem milhões. Quando isso acontecesse, esses seguidores poderiam comprar camisetas, livros, ou qualquer outro produto que eu oferecesse.

Como para sonhar não custa nada, eu gosto de sonhar em grande estilo.  É o que aprendi, quando as coisas parecem difíceis ou impossíveis, basta apenas sonhar. Se é que você me entende.

“Isso! Por que não escrevo um livro sobre como não desistir dos seus sonhos?” A ideia parecia original, mas, ao mesmo tempo, distante de se concretizar. Escrever livros envolvia tempo, pesquisa e uma boa gramática. Tempo e pesquisa era o de menos, mas a gramática, essa precisava de uma pequena atenção.

Por desencargo de consciência, fiz uma busca rápida no Google e me demovi da ideia. Centenas de milhares já pensaram nisso antes.

Olhei novamente para o relógio e já eram 2:45 da manhã. Sabia que precisava dormir, mas a janela do sono havia se fechado duas horas antes. Gordo continuava a roncar nos meus pés. A minha bexiga deu os primeiros sinais de que precisava ser esvaziada.

Levantei-me com cuidado para não acordar o pulguento, pois sabia que, uma vez acordado ele não daria trégua. Exigiria toda a atenção para si. Enquanto desaguava, aliviava a bexiga, tirava água do joelho ou qualquer outra expressão de sua preferência, continuei imaginando o que eu poderia fazer para ganhar dinheiro online.

“E se eu fizesse um site com notícias falsas? Tipo um O Estado de S. Paulo, mas com notícias de mentira?” Essa ideia também me pareceu inédita. Chacoalhei, guardei e voltei correndo para o computador. No caminho lembrei que não lavei as mãos e tive que retornar ao banheiro.

Já na frente do computador, todo animado, resolvi procurar primeiramente um nome para o site de notícias falsas. Tinha que ser algo chamativo e ao mesmo tempo que caísse no gosto do público. Essa tarefa ficaria mais fácil se eu tivesse mais um copo de vinho. Entrei no Facebook para saber se havia alguma notificação e acabei me distraindo com alguns vídeos de gato tocando piano. Olhei para o relógio e já eram 4:17. Logo o Sol começaria a invadir o meu recinto. Resolvi, a contragosto, dormir. Quem sabe, com a cabeça descansada, eu conseguiria arranjar um nome para o site de notícias. Levantei-me com calma para deitar-me e dormir, mas acabei chutando o pulguento do Gordo. Para acabar tive de brincar com ele até que ficasse cansado e voltasse para a sua caminha. Era tudo o que eu precisava numa madrugada de segunda-feira.

Segunda-feira 06:13 AM 

O dia amanheceu rápido. Acordei com o travesseiro babado e com o Gordo alinhado nos meus pés. No relógio da parede marcava 06:13 da manhã, mas no meu relógio biológico ainda eram 11:48 da noite. Eu precisava de mais tempo para dormir. Doce ilusão. Era preciso levantar antes que o seu Augusto batesse à porta cobrando os dois meses de aluguel. Resolvi negociar o sono por mais alguns minutos, pois teria um dia longo pela frente.  Afinal, não é fácil ficar como nos últimos dias, na esquina, de espreita até as 8 da noite, esperando o proprietário ir embora. Virei para o lado e resolvi cobrir também o Gordo que estava tremendo de frio.

Seis batidas fortes e desnecessárias foram desferidas na porta. Isso fez com que o Gordo e eu acordássemos instintivamente em posição de defesa. Olhei para o relógio da parede e vi que já eram 11:53 da manhã. Não conseguia acreditar, mas eu havia perdido a hora. Meio atordoado, não sabia se já era segunda-feira ou ainda estávamos no domingo. Logo caí na real e dei-me conta de que era o seu Augusto querendo cobrar o aluguel. Como eu queria que fosse uma Testemunha de Jeová que estivesse batendo à porta.

Fiz sinal para o Gordo usando expressões faciais e o movimento dos olhos. Não queria fazer barulho. Ele sabia que não podia nem respirar para não chamar a atenção do proprietário. Depois de vários minutos de tensão, as batidas na porta ressoavam entre intervalos maiores. Isso indicava que eu estava vencendo o primeiro round do dia.

Levantei-me com todo o cuidado, evitando chutar os copos, garrafas e a tigela de pipoca vazia, que estavam ao pé da cama. O silêncio era ensurdecedor. Não sabia se o seu Augusto tinha ido embora ou se estava dando uma trégua.

Andei na ponta dos pés até a porta para observar pelo olho mágico. O maledeto trouxera uma cadeira e sentou-se de frente para a porta. Era para acabar com o meu dia. Se eu quisesse evitar o enfrentamento com o canseira do seu Augusto, teria de ficar em silêncio. Sem ligar a tv, rádio, ventilador ou dar as tradicionais broncas no Gordo.  Ele parecia entender a situação e começou a abusar de sua sorte. Acho que o Seu Augusto deve ter percebido os movimentos na quitinete, porque ele logo desferiu várias batidas na porta. “Esse velho não tem o que fazer?”, perguntei para mim mesmo, embora já soubesse a resposta: seu Augusto era aposentado.

“Sr. Silva, sr. Silva.”, gritava ele nos intervalos entre as batidas. “Eu sei que você está aí e não vou sair daqui até receber o aluguel.”

A situação tinha ficado preta para mim. Desempregado, com o aluguel e as contas atrasadas, sem o auxílio e sem perspectivas de arrumar um novo serviço. Eu havia chegado ao fundo do poço.

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Fui até a geladeira ver se tinha algo para comer e a única coisa que encontrei foram duas forminhas de gelo. Peguei uma pedrinha para mim, dei outra para o Gordo e voltamos para a cama. Ficamos chupando aquele gelo na esperança de que refrescasse um pouco, pois estávamos cozinhando devido ao intenso calor.

A oscilação de temperatura em nossa cidade costumava nos pegar desprevenidos. À noite era um frio da gota e, durante o dia, o calor era insuportável. Gordo se deliciava com o gelo, mastigando rapidamente. Eu já não tinha a mesma facilidade, devido ao fato de a pedra não caber inteira na boca.

Enquanto tentava me refrescar, pensei num plano “K”, pois todos os anteriores já haviam fracassado. Não tinha outra solução a não ser entregar a quitinete. Provisoriamente, poderia dormir na van que eu comprara com o fundo de garantia. Isso mesmo! Bastava tirar os bancos traseiros, adaptar uma cama e colocar umas cortininhas nas janelas. Venderia todos os móveis, eletrônicos e roupas que não precisasse e, com a grana, pagaria o aluguel. Quem sabe  sobraria algo para comprar um fogãozinho para não descuidar da nossa alimentação? Durante o dia, poderia transformar a van em um escritório e trabalhar com a internet em algum estacionamento do Mcdonalds roubando, digo, usufruindo do wifi. A ideia me parecia ótima. Pensei em contar para o Gordo, mas ele já estava babando novamente.

Criei coragem e levantei-me para contar as novidades para o Seu Augusto. Abri a porta e ele estava caído, desacordado, no chão. Pelos sintomas, parecia que ele estava tendo um ataque cardíaco. Comecei a fazer os procedimentos que havia aprendido num cursinho do Sesc e gritei para o Gordo trazer meu telefone. Era o único truque que ele sabia e fazia sempre todo orgulhoso. Telefonei para a emergência e eles informaram que, em 5 minutos estariam no local. Continuei com as massagens no peito do seu Augusto e, desesperadamente, gritei com ele: “Fica comigo, seu Augusto. Não vá morrer aqui. A emergência está vindo. Vamos, seu Augusto, fica aqui comigo, não vá morrer. Por favor.”

Gordo, instintivamente, começou a latir alto em frente a cada porta do corredor.  Em pouco tempo os vizinhos, que nunca haviam me cumprimentado, estavam assistindo à minha performance. Era evidente que eu não tinha ideia do que estava fazendo. Eu continuei a gritar com o seu Augusto: “A emergência já tá chegando. Força. Fique comigo.” Eu não acreditava que o velho iria morrer nos meus braços. Eu já estava cansado, desesperado, fora de mim. Foi quando a emergência chegou e assumiu os primeiros socorros.

Checaram o pulso dele e constataram a necessidade de aplicar o desfibrilador no peito. Deram uma série de quatro choques, no total. Eu já não ouvia mais nada, a não ser o barulho do corpo se levantando e batendo de volta no chão. Os paramédicos desistiram do procedimento, já dando como morto o maledeto. “Mas não vai ser na minha frente que esse velho vai morrer”, esbravejei. Arranquei o desfibrilador do paramédico e meti no peito do seu Augusto, gritando: “Mas não vai morrer mesmo, seu velho safado. Não me deixou dormir tranquilo e agora vai embora? Toma essa!”, praguejei em voz alta enquanto aplicava um terceiro choque. Os vizinhos e os paramédicos ficaram sem ação.

“Voltou o pulso!”, gritou um dos paramédicos. Os vizinhos não sabiam se aplaudiam ou se enxugavam as lágrimas. Fiquei imóvel, sem ação.  O outro paramédico tirou o desfibrilador da minha mão e falou que eles cuidariam do caso a partir dali. Eu não sabia se chorava de alegria, de raiva ou de nervoso mesmo. Os paramédicos colocaram o seu Augusto rapidamente na ambulância, mas não me deixaram entrar.

Seguiram para o hospital mais próximo. Os moradores, que nunca tinham conversado comigo, vinham um a um me parabenizar. Eu ainda estava em estado de choque e não conseguia assimilar o que estava acontecendo. Logo todos foram embora e fiquei sozinho com o Gordo, sentados no corredor.

“O que você foi fazer, seu Silva?” Minha consciência estava pesada. Parecia que eu era o culpado de tudo aquilo acontecer e esse sentimento começou a me consumir. Levantei-me, peguei a chave da van e fui até o hospital. Enquanto não soubesse como ele estava, não conseguiria fazer mais nada. No hospital, mandaram eu aguardar numa sala de espera. Como ele não tinha nenhum parente morando na cidade, eu acabei ficando como membro da família. Assim eu poderia visitá-lo e receber informações sobre seu estado de saúde.

Depois de duas horas de cirurgia, veio o doutor e me avisou de que ele estava fora de perigo. Tivera um ataque cardíaco, mas, como foi rapidamente atendido, ele conseguiu sobreviver. Ia ficar uns dois dias na UTI, mas depois iria para o quarto.  Era um alívio para mim. Voltei para casa todo contente. Pelo menos o peso na consciência diminuiu. No estacionamento, encontrei uma nota de 100 reais. Olhei para todos os lados e não havia ninguém. O jeito foi pegar a nota e dar uma passadinha no mercado.

Comprei o essencial e logo estava em casa me deliciando, saboreando um pão com mortadela e tubaína. Nem mesmo o Gordo acreditava naquela nossa sorte. Não era sempre que tínhamos mortadela. Com a barriga cheia, resolvi dar mais um cochilo, afinal, nós merecíamos.

O sono gostoso foi interrompido com seis batidas fortes na porta. Acordamos indignados, afinal, depois de salvar uma vida, estávamos dormindo o sono dos justos. Levantei-me e fui em direção à porta e já abri preparado para dar uma bronca em quem quer que fosse.

“Finalmente abriu a porta, hein!”, exclamou Seu Augusto enquanto colocava um pé na porta para que eu não fechasse.

“Mas o Sr. não estava no hospital?”, perguntei atônito.

“Bebeu? Estou o dia inteiro aqui na porta batendo para cobrar os dois meses de aluguel que você me deve.”, respondeu ele. Minha primeira reação foi caminhar até a geladeira.

Ao abri-la, caí na realidade.  A geladeira estava vazia e tudo aquilo não passou de um sonho. Eu deveria ter percebido quando o Gordo trouxera o telefone. O único truque que ele sabe fazer é deitar e dormir em poucos segundos. E, quando a emergência chegou em 5 minutos, eu deveria ter acordado. Nem se eles tivessem um postinho aqui na esquina eles viriam tão rápido. Realmente, tudo não passava de um sonho.

Não sabia se sorria pelo fato de o seu Augusto estar vivo ou chorava pela geladeira estar vazia.

Eddie Silva

 

Sobre o autor

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Escritor, redator, podcaster, paulistano criado em Curitiba começou a cultivar o interesse pela escrita aos 14 anos. Escreveu uma coluna semanal para um jornal comunitário brasileiro nos EUA e se tornou editor de um periódico independente. De Pittsburgh realizou o Premio Podcast no Brasil em 2008/2009. Escreveu um livro sobre técnicas de filmagem com iPhone e iPad e o romance: “Tudo que tenho de fazer é sonhar“. Atualmente não consegue equilibrar o tempo gasto com Animação 3D, filmagens com smartphone, pilotar Drones e criar artes com Inteligência Artificial.


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