O melhor pai do mundo – Capítulo 04

A noite escureceu rapidamente. Isso fez com que eu me apressasse em encontrar alguma rua minimamente urbanizada, porque de dentro do matagal fechado era possível ver apenas o reflexo da lua. Depois de uma longa caminhada cheguei em casa. A janta já estava na mesa. Geralmente meu pai e eu preparávamos juntos, mas hoje eu precisaria justificar a minha falta. Inventei uma desculpa ao longo da caminhada, só não sabia se meu pai a aceitaria de bom grado.

“Oi Leo, tudo bem com você?”, perguntou meu pai num tom amigável. “Espero que tenha aproveitado bem o seu último dia de férias.”, continuou ele. noite escureceu rapidamente. Isso fez com que eu me apressasse em encontrar alguma rua minimamente urbanizada, porque de dentro do matagal fechado era possível ver apenas o reflexo da lua.

“Desculpe, pai, por chegar esta hora e não ajudá-lo na janta. É que…” “Vamos comer e você me conta como foi a sua tarde”, interrompeu ele indo em direção à mesa.

Eu não sabia por onde começar. Como contar que eu não estava na biblioteca, mas no rio nadando? Meu pai pegou a panela do arroz e perguntou enquanto servia: “Leo, como estava o rio hoje?” Imediatamente arregalei os olhos e engoli em seco. Como ele sabia que eu estava no rio? Será que alguém me viu? Será que o Velho Buldogue veio cobrar a sua janela? Não sabia se respondia à pergunta dele ou aos questionamentos que eu mesmo me fazia. Tentei raciocinar rapidamente, mas não consegui dar uma resposta antes que ele acabasse de servir.

“Pai, hoje foi um dos dias em que posso dizer que com certeza nunca esquecerei.”, respondi tentando demonstrar certa naturalidade. Antes que eu pudesse continuar coloquei uma garfada de comida bem cheia na boca. Obviamente o que eu queria com isso era ganhar tempo para pensar no que diria na sequência. Meu pai não gostava que eu falasse com a boca cheia. O pior é que eu não estava com fome, talvez por conta do nervosismo daquele momento ou, pelo que havia passado naquela tarde.

Meu pai, ao contrário, colocava garfadas pequenas e ia mastigando rapidamente como se a comida estivesse muito boa ou curioso para saber da minha história. Após mastigar bem a primeira garfada, tomei três goles da limonada gelada. Já não sabia o que fazer para ganhar tempo. Antes de começar a contar a história resolvi perguntar: “Como você sabia que eu estava no rio, pai?” Eu realmente precisava saber o que ele sabia para poder direcionar a minha história de modo a não me complicar.

“Leo, eu sempre soube que você, principalmente no período de férias, não saía daquele rio. Várias vezes eu até passei lá para ver se estava tudo bem contigo, porque têm muitas partes fundas.”, confessou ele com um sorriso no rosto. “Mas por que você não me falou, ou ficou comigo?” Tentei deixá-lo de consciência pesada, mas foi inútil. Naquele momento o culpado da história era eu. “Leo, eu conheço aquele rio melhor que você. Na sua idade eu fazia o mesmo. Gostava de nadar e ficar deitado nas pedras, pensando na vida.

Os momentos que eu passava sozinho eram preciosos e por isso sabia que você também estava curtindo muito”. Neste momento foi ele quem deu uma garfada grande e mastigou vagarosamente, como se estivesse meditando nas próximas palavras. Essa revelação mudou toda a estratégia de defesa que eu tinha formulado até ali. “Pai, você já pulou daquele barranco alto?”, perguntei no impulso e me arrependi logo em seguida. Independentemente da resposta que ele me desse, eu sabia que a pergunta seria devolvida, ele perguntaria o mesmo para mim.  “Pulei uma vez”, respondeu com um olhar distante, tentando, quem sabe, relembrar a façanha. “Conta como foi, pai”, pedi ainda com a boca cheia, sem se aperceber que o meu apetite já tinha voltado. “Foi no verão de 58”, começou ele, empurrando o prato de lado e colocando mais limonada em seu copo. “Estava muito quente e, como nos dias anteriores, após ter nadado a manhã inteira, deitei-me nas pedras para descansar e fiquei olhando a paisagem. Sempre que eu mirava aquele barranco ficava imaginando se algum dia eu teria coragem de pular. Acho que eu nunca vou me esquecer daquele dia. Eu não tinha muita proximidade com os garotos da escola. Ouvia deboches o tempo todo. Muitos me chamavam de covarde. E eu até comecei a acreditar que era mesmo.

Havia uma festa anual na escola. Era comum que os meninos convidassem as meninas para fazerem par. Eu gostava de uma garota, mas nunca havia tido coragem de dar um ‘oi’ para ela. Cada vez que a via, meu coração disparava. Mas, naquela tarde, não sei o que aconteceu comigo.

Eu, deitado naquelas pedras, fiquei imaginando se teria coragem de convidá-la. Tinha chegado à conclusão que aquela seria a tarefa mais difícil que eu poderia realizar em toda a minha vida. Mais difícil que pular daquele barranco à minha frente. Resolvi, então, subir até o topo do barranco para avaliar o grau de dificuldade. Eu sempre me perguntava se teria coragem de pular daquele barranco, mas nunca havia tomado a iniciativa de subir e analisar se, olhando de outra perspectiva, a coragem apareceria. Quando cheguei ao topo do barranco e olhei lá de cima, desisti de pular na hora. Era muito alto mesmo.

Conseguia ouvir, na minha imaginação, a zombaria dos garotos me chamando de covarde. Naquele momento tive a certeza de que eles estavam certos. Dei meia volta em direção ao rio. Mas algo não saia da minha cabeça: Se eu não enfrentasse aquele desafio, nunca teria coragem para fazer outras coisas, como, por exemplo, convidar a garota para a festa. Voltei determinado para a beira do barranco. Eu olhava para baixo mas não conseguia adquirir a coragem necessária para o salto. Resolvi contar até 10 e, quando me dei conta, já estava em 105, 106, 107… Parei de contar, e imaginei que algum outro garoto poderia convidar a musa dos meus sonhos para a festa. Foi aí que criei a coragem necessária. Contei até 3 e pulei.”

“E o que foi, pai, o que você sentiu?”, perguntei já relembrando da minha experiência de horas antes.

“Olha, filho, os segundos que se passaram após o salto, até eu chegar à superfície, foram de uma experiência inesquecível. Na minha cabeça passou centenas de coisas num espaço de tempo muito curto. Foi a melhor coisa que eu fiz. No outro dia eu encontrei aquela garota e a convidei para a festa. Ela aceitou. E 10 anos depois nós nos casamos, e um ano depois você nasceu.”, concluiu com os olho marejados. Eu não acreditava no que acabara de ouvir. Meu pai, contando sua história, estava narrando a minha história. Meus medos, meus sonhos, minha garota – com quem eu também não tinha coragem de puxar assunto – e até mesmo o tempo que ele passava deitado nas pedras.

Ele se levantou e começou a ajuntar a louça, talvez para disfarçar e conter a emoção. Mais que depressa eu levantei também e passei a ajudá-lo. Criei coragem e comecei a contar como tinha sido o meu dia. “Então, hoje depois de ter passado a tarde no rio, peguei o caminho de volta pra casa”, eu contava para ele procurando ser o mais exato possível na minha descrição.

“Aí, um bando de moleques, a turma do Tuca, me abordou. E era questão de minutos para levar uma surra histórica.” “Mas o que você fez para eles, Léo?”, perguntou com um ar preocupado.

“Nada, pai. Eles simplesmente gostam de bater em quem aparece pela frente. Eu sempre evitei confrontá-los, mas desta vez fui pego de surpresa. Mas daí, do nada, apareceu o Oliver com seu pequeno cachorro, o Skipper.” “Quem é este Oliver? Apareceu de onde? O que ele fez?”, perguntava meu pai já impaciente.

“Não sei, pai. Não sei quem é ele ou de onde veio. Só sei que com uma laranja na mão ele colocou todos pra correr, inclusive eu”, respondi rindo, relembrando do Fofão com as suas bolachas na boca.

“Como?”

“Ele chegou e pediu para os moleques não encostarem a mão em mim, mas isso acabou atiçando mais a molecada. Daí, ele, do nada, jogou aquela laranja na vidraça do Velho Buldogue.”

“Do Velho Buldogue? O moleque pirou?” Novamente eu tinha que concordar que foi muita loucura. Mas continuei contando todos os detalhes até chegar nos momentos anteriores ao salto daquele barranco. Meu pai ouvia cada palavra como quem lê um livro de suspense. E eu, é lógico, ao perceber o seu interesse, dava uma reforçada na minha narrativa pra deixá-la mais atraente.

“Quando chegamos na beira do barranco tínhamos duas alternativas: enfrentar os cães ou saltar do barranco. Antes que pudéssemos votar ou, analisar as alternativas, o Oliver e eu pulamos, sem pensar nas consequências ou no medo. Naquele momento nosso maior medo era o de ser atacado pelos cães. Pular no rio foi um simples ato de sobrevivência. E como você falou, pai, eu nunca vou esquecer da sensação. Nos poucos segundos em que flutuei no ar, um filme passou pela minha cabeça”.

“E o Velho Buldogue? E os outros moleques? O que aconteceu?”, perguntou ele realmente preocupado com os garotos, mas sem perguntar como foi o meu salto. “Não sei, pai. Amanhã, depois da escola, o Oliver e eu iremos até a casa do Velho Buldogue pedir desculpas. E o Oliver irá pagar a vidraça. Sabemos que foi errado, mas foi a única saída que ele encontrou naquele momento de desespero. E sou grato por isso.”

“E como foi o salto, meu filho? Você gostou? Se machucou?”, indagou com certa dose vaidade.

“Pai, acho que foi uma das maiores experiências que eu tive até o dia de hoje”, respondi com um sorriso de alívio. Estava satisfeito por tudo ter dado certo no final. Meu pai veio e me abraçou.

“Léo, estou muito orgulhoso de você.  Nunca tenha medo de me contar algo achando que irei brigar com você. Eu prefiro que seja honesto comigo, afinal, você é meu filho, mas, principalmente, é meu amigo”. Aquelas palavras mexeram comigo.

Mesmo amando meu pai, nunca o havia imaginado como amigo. O arrependimento de ter mentido para ele todo esse tempo veio mais rápido que o salto que eu havia dado no rio.

Às vezes eu preferia apanhar dele de cinta do que ouvir suas repreensões, que doíam muito e deixavam cicatrizes psicológicas. A surra era esquecida minutos depois, as cicatrizes psicológicas raramente desapareciam. Naquele dia fomos dormir bem depois do nosso horário habitual. O dia seguinte seria o retorno às aulas. Eu mal podia esperar. A conversa com o meu pai me fez criar um pouco de coragem. Isso ajudaria a enfrentar o que me aguardava na manhã que ia chegando: tanto o reencontro com a turma do Tuca, quanto a ida à casa do Velho Buldogue. Sem falar que eu veria a minha princesa de olhos verdes. Escovei os dentes enquanto meu pai tomava um vinho e ouvia um LP antigo na sala. Desejei boa noite e fui para cama imaginado como seria o meu primeiro dia de aula.

Terceiro capítulo do livro Tudo que tenho de fazer é sonhar, do Eddie Silva, que está em promoção na Amazon. Adquira já o seu exemplar. A promoção é por tempo limitado.

Sobre o autor

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Escritor, redator, podcaster, paulistano criado em Curitiba começou a cultivar o interesse pela escrita aos 14 anos. Escreveu uma coluna semanal para um jornal comunitário brasileiro nos EUA e se tornou editor de um periódico independente. De Pittsburgh realizou o Premio Podcast no Brasil em 2008/2009. Escreveu um livro sobre técnicas de filmagem com iPhone e iPad e o romance: “Tudo que tenho de fazer é sonhar“. Atualmente não consegue equilibrar o tempo gasto com Animação 3D, filmagens com smartphone, pilotar Drones e criar artes com Inteligência Artificial.


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