Moradias irregulares e o olhar do poder público
“A gente entra com a mão de obra, mas não vale a pena para a gente. É como diz a música: ‘Está vendo aquele prédio? Eu ajudei a fazer, mas hoje não posso passar nem perto'”. Essa frase foi proferida pelo pedreiro Carlos Augusto Silva numa entrevista ao site BBC Brasil, na qual ele contou ter ajudado a erguer, há três anos, no bairro de Interlagos, localizado na zona Sul de São Paulo, um conjunto de 12 prédios de alto padrão com 23 andares, onde ele jamais entrou depois de acabada a obra. Com o orçamento sempre apertado, o pedreiro resolveu erguer um barraco com teto de lona, onde vive hoje.
O cenário descrito acima faz parte da realidade de inúmeras famílias brasileiras. Somente na cidade de São Paulo, por exemplo, há, atualmente, 206 ocupações, abrigando 45.872 famílias, de acordo com dados do Grupo de Mediação de Conflito, da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo. Muitos dos imóveis ocupados, como prédios e cortiços, não possuem a devida manutenção e se encontram em condições estruturais precárias. Os dados da Secretaria ainda apontam que, aproximadamente, 1,2 milhão de famílias estão vivendo em situação precária, o que comporta um déficit habitacional de 358 mil moradias – o equivalente ao número de habitações que precisam ser construídas.
O problema da precariedade das moradias paulistanas ganhou notoriedade na mídia desde o dia 1º de maio de 2018, quando o Edifício Wilton Paes de Almeida desabou após um incêndio, deixando 320 pessoas sem habitação e, pelo menos, sete mortos. O local era uma ocupação irregular situada no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo. É justamente na região central onde estão concentradas a maior parte das ocupações paulistanas (53), correspondendo a 25,73% do total. Embora o Centro apresente o maior número de ocupações, a Zona Leste, região mais populosa da cidade, possui mais moradores residentes em ocupações, como reflexo de uma explosão desse tipo de moradia.
Tal explosão decorre da elevação do preço dos aluguéis e terrenos em proporção muito maior ao aumento salarial, especialmente no momento atual marcado pela elevação do desemprego e diminuição das políticas redistributivas. É o que ressalta Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada em entrevista ao portal UOL: “O negócio explode em ocupações porque não tem alternativa nem no acesso à compra da casa própria nem no aluguel formal e informal. Ninguém vai morar na zona rural de São Mateus, num barraco, porque quer. A gente precisa deixar isso bem claro. Essas ações são absolutamente resultantes da falta de opção”.
É justamente a falta de opção um ponto primordial a ser levado em consideração e que, infelizmente, não é refletido por muitos, em sua maioria por aqueles que não pertencem a tal realidade. No ano de 2015, a corporação do Corpo de Bombeiros enviou um relatório ao Ministério Público listando os perigos de trinta edifícios na Grande São Paulo, incluindo o Wilton Paes de Almeida. A investigação acabou sendo arquivada em março e reaberta após o desabamento de 1º de maio de 2018. Segundo a administração municipal, os moradores do edifício que pegou fogo foram alertados sobre o incêndio. O prefeito Bruno Covas disse ter realizado com eles seis reuniões sobre possíveis riscos e estipulado um prazo de 45 dias para a Defesa Civil fiscalizar os prédios invadidos da capital paulistana.
Tais declarações da administração pública foram muito ressaltadas midiaticamente, sem atentar-se mais para outro fato alarmante: o descaso do poder público com as famílias mais pobres, além do alto custo de vida e da desigualdade social que impera não somente em São Paulo, como no Brasil de forma geral. De acordo com o IBGE, nosso país abriga 6,3 milhões de famílias sem-teto e 7,9 milhões de imóveis ociosos. Assim, por mais que os moradores realmente tenham sido alertados, que soluções lhes foram apresentadas? Para onde iriam? É fácil apontar o dedo e julgá-los culpados quando não se está inserido em suas próprias realidades de marginalização e invisibilidade diante do poder público.
De acordo com pesquisa publicada em julho de 2008 pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo para sustentar uma família de quatro pessoas deveria ser de R$ 3.810,36, um valor quatro vezes maior ao salário mínimo brasileiro (R$ 937) – este é o salário de muitas famílias residentes em ocupação as quais sem condições de se sustentar, habitam em barracos.
Por isso é tão importante conhecer a fundo as diversas realidades brasileiras antes de julgar determinadas condições sociais. É desta forma que se adquire potencial analítico e crítico para reinvindicação dos problemas existentes: por meio da abertura e expansão cognitiva. Edgar Morin, grande antropólogo, sociólogo e filósofo francês, já nos alertava sobre os perigos do encastelamento do conhecimento científico e sua limitação: “Parece que nos aproximamos de uma terrível revolução na história do saber, em que ele, deixando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por seres humanos, integrado na investigação individual de conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser acumulado em bancos de dados, para ser, depois, computado por instâncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar” (MORIN, 2005).
Referência: MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
Sobre o autor
Mestra em Ciências Humanas. Jornalista. Especialista em Metodologia do Ensino na Educação Superior e em Comunicação Empresarial.
Assessora de Comunicação. Blogueira de Cultura e de Mídias.
Sou apaixonada por programas culturais – principalmente cinema, teatro e exposição – e adoro analisar filmes, peças e mostras que vejo (já assisti a mais de 150 espetáculos teatrais). Também adoro ler e me informar sobre assuntos ligados às mídias de modo geral e produzir conteúdos a respeito.