Neomarginais, neoburgueses e a farsa da empatia progressista

A cena, para quem ainda se permite ter vergonha alheia, foi de um grotesco instrutivo. Durante o Flipoços de 2025 — um festival que ora se leva a sério, ora flerta com o ridículo — uma tal Camila Panizzi Luz, aspirante a escritora e coach em tempo integral, convidou o autor Wesley Barbosa para subir ao palco e falar de seu trabalho.

Até aí, nada de novo sob o sol da indústria cultural. Mas o espetáculo começou quando Wesley, autor de Viela Ensanguentada (publicado pela valorosa Barraco Editorial), discorria com lucidez sobre literatura e o Coletivo Neomarginal — movimento que agrega artistas periféricos, conscientes de sua exclusão não apenas do mercado editorial, mas da paisagem simbólica do Brasil. Eis que, num arroubo de empolgação performática, Camila o interrompe com a pérola:

“Como que faz pra ser neomarginal? Eu quero ser uma neomarginal. Gente, olha que tudo: Camila Luz, neomarginal! Nunca fui presa.”

A platitude embaraçosa, típica de quem confunde autenticidade com cosplay social, expõe o que muitos fingem não ver: o abismo entre o discurso da inclusão e a prática da exclusão travestida de empatia. Ao associar, em tom de piada, o termo “neomarginal” à prisão — como se toda estética dissidente viesse de algum prontuário criminal — a senhora Luz apenas vocalizou o preconceito de um meio que, embora maquiado com tintas progressistas, ainda teme e despreza tudo o que escapa ao seu código postal emocional.

A burrice, como bem sabia Nelson Rodrigues, tem um poder radioativo: contamina o ambiente. E, como de costume, os ecos do disparate se espalharam, reforçando o estigma que há décadas acompanha artistas das margens — aqueles que não frequentaram oficinas literárias em Vila Madalena nem tomam espresso em mesas brancas de coworkings de Pinheiros.

A verdade incômoda, que não cabe nos slogans do marketing cultural, é que há uma elite simbólica que se julga aberta, mas apenas admite o outro enquanto exótico domesticado. Não é à toa que, anos atrás, o mesmo Flipoços abrigou um sujeito que se dizia príncipe de uma monarquia inexistente, e que aproveitou o palco para destilar homofobia. De tempos em tempos, o festival revela a si mesmo — e como todo organismo narcisista, oscila entre lampejos de virtude e surtos de vergonha pública.

Não se trata de um caso isolado. A curadoria do evento, segundo a própria Camila revelou candidamente no LinkedIn (aquele confessionário corporativo onde todos são CEO de si mesmos), funciona na base da camaradagem hereditária: ela foi convidada porque é filha de uma velha amiga. Nada mais honesto — no Brasil, quase tudo que se diz “meritocrático” opera, na verdade, com base nos parças. Grupos de afinidades sociais, políticas ou afetivas definem as chaves de entrada. O problema não está na amizade, mas na hipocrisia institucionalizada que a recobre de discurso técnico e neutro.

Enquanto isso, quem construiu cena à força de ralação, como Wesley e tantos outros escritores de quebrada, continua sendo alvo de desdém e zombaria. A ironia — que só não vê quem não quer — é que o próprio autor respondeu com elegância e firmeza: “Também nunca fui preso.” Uma frase que, na sutileza, revela a brutalidade do rótulo imposto.

Essa dinâmica, diga-se, não é nova. Na década de 1990, senhoras de classe média tremiam ao ver os Racionais MC’s ganharem voz e corpo fora do Capão Redondo. Aquilo que elas suportavam apenas como objeto folclórico, tornou-se incômodo quando se apresentou como pensamento. E é sempre assim: quando o marginal fala bonito, escreve com força e desafia a gramática das elites, vira ameaça. Não por ser perigoso, mas por ser verdadeiro.

O Brasil é um país curioso. Quem vive em Ipanema se sente mais próximo de Paris do que de Parelheiros. A elite cultural do eixo Rio-São Paulo — e aqui falo da elite simbólica, aquela que comanda editoras, prêmios, festivais e verbas — continua preferindo ouvir Carolina Maria de Jesus apenas como figura histórica domesticada, e não como autora radical, insurgente, cuja escrita desmonta a lógica da casa-grande.

Há exceções? Claro. Mas são exceções que confirmam a regra: FerrézSérgio VazGeovani MartinsLilia Guerra — nomes festejados não sem antes serem testados, filtrados, palatabilizados. Quando escapam a isso, enfrentam boicote, invisibilidade ou, no máximo, o abraço disfarçado da condescendência.

A estética da quebrada não precisa da chancela da Faria Lima para existir. Ela pulsa, sobrevive, e hoje traça seus próprios caminhos. Mas o sistema editorial — com sua liturgia de editais, selos e camarotes — ainda reluta em aceitar que o centro não é mais o centro. Por isso mesmo, de tempos em tempos, alguém como Camila sobe ao palco e, em nome da leveza, revela o peso do preconceito.

A literatura é, acima de tudo, um campo de guerra simbólica. E cada vez que a elite tenta transformar resistência em performance, o ridículo triunfa. Camila Panizzi Luz, com sua verborragia de LinkedIn e seu humor de planilha, apenas revelou o que muitos ainda se recusam a admitir: por trás da empatia performática, mora o velho desprezo colonial.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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