Degredados somos nós

Mais importante do que conhecer sobre um assunto é saber a hora de falar e a hora de calar

 

Um dia depois do incidente (leia aqui) as pessoas do bairro não falavam sobre outro assunto. Todos tinham suas teorias e justificativas. Minha avó havia chegado do hospital no meio da madrugada. Seu pulso enfaixado e preso a uma tipoia dava-lhe um aspecto de pessoa frágil. Era a primeira vez que eu enxergava dona Odília como uma simples mortal. Aquela mulher, que à época contava 44 anos, sempre havia representado – ao menos para mim – a imagem de alguém que poderia resistir a qualquer coisa.

Sentados à mesa do barraco, ela e meu tio conversavam sobre o que fazer. Pediram que eu fosse brincar com os meninos. Não queriam que eu ficasse ouvindo.

O carro de pedal estava jogado no quarto. Não havia clima para levá-lo para à rua. Saí meio entristecido, queria participar da conversa. Mas que autoridade teria um moleque da minha idade? Desci a ladeira até a casa do Murilo. O assunto lá não era diferente. Seu João, pai do Murilo, explicava para a esposa e filhos que a tendência à criminalidade e à violência era herança portuguesa. “Só vieram para o Brasil os criminosos de Portugal, gente que a Coroa não queria por lá”, argumentava ele. Foi a primeira vez que tive contato com essa teoria.

Descobri depois que essa ideia estava presente no trabalho de vários estudiosos que pensaram o Brasil ao longo da história. A questão é que nunca houve consenso sobre o assunto.

Já na carta de Pero Vaz de Caminha, documento que representa a certidão de nascimento do nosso País, havia menção direta aos degredados que aqui ficaram: “E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro”, escreveu Caminha. Não sei bem qual era o caso, mas parece que sempre levavam alguns degredados nessas longas viagens marítimas para o caso de emergências como aquela. Eles precisavam seguir viagem rumo às Índias e pretendiam deixar aqui o pobre Afonso Ribeiro para aprender o idioma dos nativos, conhecer a terra, descobrir se existia riquezas a serem exploradas e catequizar os nativos.

Sim, por mais absurda que nos pareça, essa era uma das justificativas da colonização portuguesa, levar o evangelho aos gentios. A prova disso é um trecho específico da carta que diz: “E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. ”

Em outro trecho Pero Vaz deixa ainda mais clara a intensão de cristianizar os nativos de Pindorama. Já perto do final da carta ele pede que se envie padres tão logo venha a primeira missão à nova terra: “E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram”, argumentou o correspondente.

Além do Afonso Ribeiro, mais dois degredados foram deixados pela frota de Cabral. Seus nomes não foram registrados por Caminha.

Meu amigo Murilo, por sua vez, girava o dedo indicador ao redor da orelha, como quem quisesse indicar que aquela conversa de seu João era coisa de louco. Ninguém na família levava o coitado a sério. Ele trabalhava como pedreiro, tinha pouco instrução, mas era metido com o sindicato, e sempre que voltava das reuniões danava a conversar com os vizinhos e com a família tentando mostrar o quanto havia aprendido.

Uma vez o Murilo me confessou que Seu João sonhava, quando criança, em ser professor. A vida, no entanto, o levou por um caminho diferente. Ele se orgulhava de poder sustentar a esposa e os quatro filhos com o suor do seu trabalho, mas aquela fome de conhecimento ainda estava ali. Talvez por isso o sindicato dos trabalhadores lhe servisse como a sala de aula que nunca frequentara. Era comum vê-lo tentando converter algum dos vizinhos. Repetia de cor toda a argumentação marxista que ouvia nas reuniões do sindicato. A reação era sempre a mesma. Familiares ou vizinhos sempre giravam o indicador em volta da orelha tão logo ele virasse as costas.

Mas naquele dia a conversa parecia fazer algum sentido. Eu estava profundamente magoado com o que havia acontecido. Como alguém poderia querer machucar a minha avó? Eu não conseguia entender.

A justificativa simplista de que nós, brasileiros, descendíamos do que havia de pior no mundo era muito verossímil no auge dos meus cinco anos de idade.

Anos depois, focando apenas naquilo que eu queria ler, encontrei trechos de vários autores que pareciam corroborar a minha crença.

Sobre a colonização do Brasil e a guerra entre Portugal e Espanha pela dominação das novas terras, o antropólogo Darcy Ribeiro escreveu em seu livro, O Povo Brasileiro: “O projeto real era enfrentar seus competidores povoando o Brasil através da transladação forçada de degredados. Na carta de doação e foral concedida a Duarte Coelho (1534), se lê que El-Rei atendendo a muitos vassalos e à conveniência de povoar o Brasil, há por bem declarar couto e homizio para todos os criminosos que nele queiram morar, ainda que condenados por sentença, até em pena de morte, excetuando-se somente os crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa. ”

Portugal, não podendo dispensar seus valorosos homens, colonizava a Índia Ocidental com aqueles que fossem mais dispensáveis à sociedade lusitana.

E o número desses exilados que migrava para o Brasil era significativo. Em determinado trecho, do já citado livro, Ribeiro nos conta que: “O primeiro governador chega ao Brasil em 1549, em três naus, duas caravelas e um bergantim [embarcação tipo galé]. Traziam funcionários civis e militares, soldados e artesãos. Mais de mil pessoas ao todo, principalmente degredados”.

Uma coisa que não me ocorreu diante daquele discurso foi o fato de que o Seu João foi um dos primeiros a socorrer a minha avó. Na sequência outros vizinhos apareceram. Havia acontecido uma comoção instantânea. Alguns homens chegaram mesmo a se juntar com a intenção de perseguir o criminoso. A perseguição não deu em nada, é verdade, mas a intenção demonstrou que nem todos eram insensíveis mercenários. Na verdade, apenas um homem havia cometido o crime e todo o resto da população levava a culpa. Aquelas pessoas eram, em sua grande maioria, honestas, íntegras, trabalhadoras. Seriam descendentes dos mesmos degredados?

Um outro pensador brasileiro, Gilberto Freyre, esclarece alguns pontos sobre essa questão. Ele dá respostas para perguntas como: quem eram esses degredados que colonizaram o Brasil? Qual legado eles realmente deixaram?

Para Freyre, “A colonização por indivíduos – soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristãos-novos fugidos da perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira – quase não deixou traço na plástica econômica do Brasil. Ficou tão no raso, tão à superfície e durou tão pouco que política e economicamente esse povoamento irregular e à-toa não chegou a definir-se em sistema colonizador. ”

Freyre nos conta que o degredado que vinha para o Brasil ou que seguia para a África era, quase sempre, alguém que havia cometido crime religioso. Ateus, hereges e feiticeiros eram o grosso desse contingente de exilados. Segundo o autor de Casa Grande e Senzala, pelo crime de matar o próximo, de desonrar-lhe a mulher, de estuprar-lhe a filha, o delinquente não ficava, muitas vezes, sujeito a penas mais severas que a de “pagar de multa uma galinha”.

Sim, vieram degredados. Sim, em números significativos. Mas não eram criminosos como definiríamos hoje em dia. Eram judeus que haviam se convertido há pouco e sob os quais pairavam alguma dúvida sobre a sua fé; eram pessoas que se declaravam ateus; mulheres que faziam simpatias para trazer de volta o amor perdido; etc., etc. E mesmo estes, não haviam influído profundamente em nossa cultura.

O problema não era esse. O povo brasileiro é, em sua maioria, honesto. Por que, então, o nível de criminalidade é maior do que em outros lugares? O problema estaria em nossas outras matrizes étnicas? Me recuso a aceitar explicações tão pueris.

Naquela época, no entanto, o argumento simplificado da nossa maldita herança genética fazia todo o sentido. Fui para a rua brincar com o Murilo e os outros moleques. Perto da hora do almoço, quando voltei para a casa, queria explicar para a minha avó a teoria que havia aprendido com Seu João. Queria demonstrar como eu era capaz de entender a vida. Talvez assim ela me deixasse participar das próximas conversas de adultos. No fim, fiquei com medo de ser repreendido por estar me metendo em assuntos que não eram da minha conta. Preferi me calar. Foi uma sábia decisão.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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