No mais íntimo momento de mim

Rafael Garbelini Viana acendia o segundo cigarro da noite enquanto caminhava pela Avenida Conselheiro Nébias, onde cursa o primeiro semestre de Filosofia, até a sua casa no Bairro do Boqueirão. Trajava calça jeans azul e uma camisa cinza sem estampa – não gosta de cores fortes, desenhos ou qualquer detalhe em sua roupa que chame a atenção e por isso todas as suas camisas possuem um tom neutro, que varia entre o branco, cinza ou preto.

Chuviscava após um temporal que havia caído 45 minutos antes. Garbelini levou o cigarro à boca, encheu os pulmões de fumaça, olhou para o céu escuro como quem procura respostas. Os pingos molhavam seu rosto. Gesticulou fazendo movimentos circulares com a mão direita, hábito muito comum quando fala em tom mais sério, quase professoral. Soltou a fumaça e disse:- Você não perguntou do que é que eu tenho medo?

– Do que é que você tem medo?

-De ficar cego.

-Por que a cegueira?

-Eu não poderia mais ler, respondeu lacônico. Voltou a colocar o cigarro na boca.

Garbelini é formado em Direito, mas nunca exerceu a profissão de advogado. Trabalha com análise e planejamento de sistemas de computadores para empresas da Capital.

Trinta e três anos, caucasiano, estatura mediana – por volta de 1, 70 m -. Começou a aprender sozinho os rudimentos da programação aos 19 anos com um computador que ganhou do padrinho. Apesar de autodidata também em filosofia, começou este ano a cursar o bacharelado na disciplina socrática. “A filosofia é a paixão da minha vida. O Direito e a programação são as amantes”.

Rafael Garbelini tem poucos amigos, aversão a baladas e festinhas, e asco às conversas que considera fúteis. Não poupa críticas ao que classifica como “a deplorável situação em que se encontra a cultura do país”. Acredita na necessidade da erudição como ferramenta para o pensamento livre, mas critica seu uso como puro instrumento de ostentação. “Marilena Chauí tem uma vasta cultura filosófica, mas onde está a filosofia desenvolvida por ela?”, questiona em tom jocoso, se referindo à autora de Um Convite à Filosofia.

Sobre namoro, Garbelini se sai no melhor estilo Bukowski. “Eu não gosto de mulher, eu gosto é de boceta. Infelizmente, a mulher vem junto”.

Aos dois anos de idade, seus pais se divorciaram num processo traumático – ele só voltaria a se aproximar da figura paterna aos 31 anos, embora o pai morasse em São Vicente. Na infância, a mãe reclamava que Garbelini era uma criança calada, amuada. Não acredita numa relação entre a separação dos pais e o próprio comportamento. “Algumas pessoas já têm certas tendências. Eu tive sorte de não ter sido criado por ele, porque teria me tornado um covardão”.

Por não gostar de aglomerações, freqüenta a faculdade com certo distanciamento social. Prefere passar o final de semana em casa, sozinho, vendo um filme ou lendo um livro. “Eu tento me aproximar das pessoas que me acrescentem algo”.

Garbelini diz não sentir necessidade do convívio social, e se irrita com quem tenta tirá-lo do seu estado de misantropia. Como defesa, ele cita Nietzsche. “Não me roube a solidão se não me trouxer verdadeira companhia”.

Durante seu último ano no curso de Direito freqüentou as baladas santistas, mas não conseguiu se adaptar. “São lugares de grandes solidões, está todo mundo sozinho ali fingindo que está acompanhado”.

Garbelini é adepto do existencialismo. Mas ao invés de se interessar pelas obras de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, o objeto de estudo de Garbelini é a obra de Arthur Schopenhauer. “Ele possui uma visão realista pela capacidade de separar e analisar a sociedade”.

Ao chegar à porta do seu apartamento, já está com a chave correta na mão. Não gosta de ficar perdendo tempo procurando. “O tempo urge”, diz, citando Santo Agostinho.

Seus livros na estante são organizados em ordem cronológica ao invés de seguirem as regras de catalogação bibliográfica.

Como mora sozinho e trabalha em casa, Garbelini consegue fazer seu próprio horário. Por conta do sono fragmentado, escreve suas linhas de código durante a madrugada ou sempre que aparece um novo insight. Seu convívio social se restringe ao mínimo necessário. “Na solidão sai à superfície tudo que somos”, justifica, desta vez citando São Bruno.

Garbelini é católico apostólico romano. “Pode colocar aí que eu sempre gostei da liturgia romana, põe isso aí”. Tentou seguir a vida monástica, mas acabou desistindo, pois “precisaria gostar de gente para seguir esse caminho”.

De qualquer forma, costuma passar seus natais isolado, quase sempre no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. “Como eu tenho contato com eles desde moleque, desenvolvi uma amizade muito grande. Quando eu morava com a minha família e chegava o mês dessas festividades, eu me mandava para lá”.

Seu ambiente de trabalho entre livros e computadores.

Por volta dos 10 anos de idade, Rafael Garbelini se aproximou da Paróquia Nossa Senhora das Graças, em Praia Grande, onde morava na época. Ficou fascinado com o símbolo da crucificação. Aquele homem que morria sozinho, “abandonado por todos”, mexeu com seu imaginário de criança. Para ele, foi um momento de êxtase, quase um nirvana, perceber que aquele homem, que era o próprio Deus encarnado, morrera ali na cruz, na solidão dos próprios pensamentos.

“Uma vida sem reflexão não é digna de ser vivida”, explica, citando Sócrates enquanto contextualiza o dogma da crucificação. “Aproveitar a vida para mim é refletir. Eu acho que nós fomos chamados à vida para conhecer”, conclui.

Sempre em tom sóbrio, com voz pausada, Garbelini afirma que compreende a necessidade do convívio social. Não luta contra o status quo, mas não consegue se enxergar se relacionando mais com as pessoas. Devaneia sobre a hipótese de algum dia morar afastado da cidade, longe de tudo, mas diz que para isso precisaria de alguém que cuidasse dos seus suprimentos diários. “O que eu gosto da cidade de Santos é a questão urbanística, da praticidade, eu desço e compro meu pão. Dessa forma, eu passo menos tempo fora de casa”.

Comentando sobre o porquê de preferir viver entre os monges a outros como ele, responde sem hesitar: “Os iguais não me acrescentam nada”.

Uma frase que gosta de repetir o tempo todo e que, talvez tenha se tornado sua máxima, é que “qualquer escolha tem um preço”.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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