Nem todos gostam de quem eu sou

As histórias em quadrinhos fizeram parte da minha formação, mas depois de cumprirem sua função eu resolvi caminhar por outros rumos

As novas tecnologias facilitaram muito nosso processo de comunicação, sou muito grato por esse avanço. Restabeleci contato com amigos de infância com os quais eu não falava havia mais de uma década. É sempre um processo complicado. Dificilmente encontramos algo para conversar. O natural é fazer o papo caminhar para interesses que tínhamos em comum. Comigo, invariavelmente, as pessoas tentam falar de quadrinhos e do fenômeno cinematográfico dos filmes de super-heróis.

Já contei a história do meu começo com os quadrinhos e de como isso me serviu de ferramenta para pertencer a um grupo. A questão é que, depois de adulto, houve um afastamento gradual. Só recentemente voltei a ler obras de arte sequencial, mas fugi dos seres superpoderosos.

A maioria desses velhos amigos fica impressionada com o meu desinteresse pelos filmes da Marvel e DC, pelos relançamentos em capa dura ou pelas novas histórias que são publicadas mensalmente.

Para começo de conversa, os quadrinhos tornaram-se extremamente caros. Uma edição em capa dura pode passar facilmente dos 50 reais. Prefiro gastar esse valor num bom livro. Além disso, o estilo de histórias que são contadas, principalmente no universo Marvel e DC, já não me empolga tanto. Talvez seja apenas uma questão de rabugice, mas tenho valores e interesses diferentes daqueles que tinha na adolescência e isso acaba se refletindo no tipo de conteúdo que eu consumo. Eu até gostaria de manter a empolgação de outrora, mas não depende de mim. Para o bem ou para o mal, eu mudei. E é preciso aceitar isso.

É óbvio que tentei racionalizar os motivos dessa mudança. Joguei a culpa na falta de tempo, no estilo das histórias, nos preços, nas publicações que nunca têm fim. Até acredito que exista um pouco de verdade em tudo isso, mas o meu afastamento foi decidido primeiro e racionalizado depois. De qualquer modo, eu precisava justificar para mim mesmo e para aqueles que perguntam. Comecei criando argumentos sobre o estilo das histórias e essa ainda é a minha melhor desculpa. Vejamos.

A obrigação primordial para quem vai consumir uma obra de ficção é a suspensão da descrença. Em resumo, o espectador tem que aceitar como verdadeiras as premissas da obra. Quando a ficção em questão é uma história em quadrinhos de super-herói, esse fator se torna muito mais importante. É preciso aceitar as habilidades sobre-humanas, a pseudociência, os superpoderes, o recurso à coincidência, as tramas pueris, a simplificação do enredo, a necessidade de conhecimento da cronologia do personagem para compreender a história, os finais previsíveis, o recurso aos clones e às viagens no tempo, a possibilidade de voltar dos mortos, a regeneração de algum membro amputado.

É importante lembrar que, nas histórias em quadrinhos de super-heróis, nada é definitivo. Na década de 1990 o Superman morreu e voltou dos mortos; o Batman teve sua coluna quebrada ao meio, mas voltou a andar; o Aquaman perdeu a mão, mas agora está com as duas intactas, o Homem-Aranha descobriu que era um clone, mas foi tudo resolvido, o Wolverine perdeu o revestimento de adamantium – seja lá o que isso signifique – nos ossos, mas conseguiu reverter a situação.

Não leve a sério meu jeito rabugento. Eu compreendo que as revistas precisam manter seu ritmo de produção e publicação – caso contrário, teríamos um monte de artistas desempregados – e sei que é exatamente por isso que tudo sempre volta ao normal. É compreensível, mas eu já tive minha cota de divertimento cósmico. No momento, estou mais interessado em questões menores, mais palpáveis, mais próximas da minha realidade. Ainda leio obras em quadrinhos que são completamente escapistas, mas num estilo bem diferente. Já citei aqui o Lobo Solitário, Tex, Zagor, Mágico Vento, mas também procuro obras um pouco mais profundas, como MAUS, Adeus Chamigo Brasileiro, Fax from Sarajevo e trabalhos similares.

Não condeno os que ainda gostam do escapismo cósmico. Compreendo perfeitamente que tudo isso é muito subjetivo. Não há demérito nenhum em gostar de X em vez de Y. A diversidade é essencial numa sociedade livre, e é ela que me garante o direito de fazer as minhas escolhas.

Mesmo sendo o amigo chato, tento me interessar pela conversa, faço perguntas sinceras sobre as novidades nos universos dos super-heróis, convido-os a experimentar outros estilos. Nada disso parece funcionar. Tento mudar de assunto. A maioria deixa de falar comigo. Vida que segue. É possível que eu realmente tenha me tornado uma pessoa extremamente chata, que só gosta de manter conversas chatas com outras pessoas chatas. Se assim for, não há muito que eu possa fazer. “Torna-te quem tu és”, dizia Nietzsche. Segui o conselho do filósofo bigodudo, mas parece que muita gente não gostou.

 

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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