Zeitgeist

Parece que as pessoas estão ficando cansadas dos heróis.

Talvez isso esteja acontecendo porque os heróis tenham a obrigação de fazer tudo dar certo e pelas vias corretas. O herói respira justiça, seus atos são sempre de acordo com nossas expectativas, sua sentença nunca é injusta e, acima de tudo, o herói está disposto a abrir mão de seu conforto para proteger e servir às pessoas.

Mas não nos bastam os heróis, queremos verdadeiros “messias”, aqueles que surgem com todas as respostas, todas as soluções e nos asseguram a entrada para os Campos Elíseos.

O problema é que, aos poucos vamos descobrindo que nossos heróis, assim como nossos messias, são feitos de carne e osso. Eles perdem a paciência, falam besteiras, tomam decisões erradas, tomam decisões certas, mas que são erradas, são injustos sem querer ou por escolha mesmo. Enfim, erram. Porque “errar é humano”. Descobrimos que são meio parecidos conosco, imperfeitos, incoerentes e não raramente confusos.

Quando isso acontece, é natural que a maioria se decepcione. E, diante da decepção, surgem os mais diversos comportamentos, que podem ir da negação à resignação. E isso pode dar margem para que nos agarremos ao primeiro salvador da pátria que apareça. Mas a atitude mais comum diante da decepção é agir de maneira reativa.

Em Psicologia existe o conceito do Zeitgeist, que se refere aos sinais dos tempos, sinais de uma época ou a soma de percepções de um contexto temporal. Segundo este conceito, o comportamento das pessoas é moldado por elementos que definem uma época e de certa maneira as compele a atuar de determinada forma.

Se olharmos para alguns elementos do contexto atual, perceberemos uma mudança de Zeitgeist bastante definida.

Basta uma visita às redes sociais para notar como as pessoas estão reativas, agem como se sobrepor suas opiniões às dos outros fosse uma questão de vida ou morte. A ansiedade por apresentar uma resposta é tamanha que, por vezes, sequer deixamos que o outro termine de se pronunciar ou nos damos o trabalho de ler sua argumentação por completo.

Para quem gosta de cinema é fácil constatar que, nos últimos anos, personagens que antes eram considerados vilões, aos poucos foram ficando mais engraçados e menos agressivos. É o caso, por exemplo, do Coringa (The Jocker), que no longa metragem “Piada Mortal” apresenta diversos diálogos e reflexões com seu principal inimigo, o Batman. No fim, ambos descobrem que têm muita coisa em comum.

Também é o caso do Lex Luthor. Famoso por tentar usar sua fortuna para destruir o Superman, aparece na nova versão da animação, “A Morte do Superman”, com ares de resignação e até cooperação para com a população de Metrópolis.

Porém, já em 2016 ocorria o lançamento mundial do filme “Deadpool”. Com divulgação exaustiva através de todas as mídias possíveis, o filme  trouxe como protagonista um tipo de anti herói mercenário desprovido de pudores e disposto a fazer o que for necessário para alcançar seus objetivos. Curiosamente, naquele ano os Estados Unidos viriam a eleger Donald Trump para a Presidência. Trump, assim como Deadpool, fala muita besteira, é inescrupuloso e parece disposto a fazer o que for necessário para alcançar suas metas, inclusive torturar criancinhas psicologicamente.

Não bastasse a edição de 2016, tivemos agora, em 2018, o lançamento de Deadpool 2, com muito mais palavrões, pancadarias e tiros. Sim, muitos tiros. Até porque, agora “ele não está sozinho”.

Em 2018 já tivemos Tanus, que no filme “Guerra Infinita” apresentou-se no que pode ser dito como um caleidoscópio de perspectivas, no qual uns poderão vê-lo como vilão e outros como salvador, mas todos se encantam com seu poder de destruição e até com seu passado sofrido.  Mas talvez um dos lançamentos mais esperados do ano seja o filme “Venom”, que traz o outrora inimigo do Spiderman como protagonista, revestido de comportamentos que envolvem doses de sarcasmo e amoralidade misturados com humor.

Ao que tudo indica, tais exemplos são apenas a ponta do iceberg, e a forma com a qual os recebemos demonstra que estamos cansados de acreditar no poder da caneta para corrigir os problemas que nos cercam. Aparentemente começamos a querer alguém que use a espada (uma submetralhadora também serve), alguém que resolva tudo o que nos importa, mesmo que seja alguém que chama as mulheres de “cadelas”, que incentive crianças a pegar em armas em vez de livros, que classifique aqueles que ousam contradizê-lo como inimigos da nação. E se for preciso, que manipule um sistema judiciário inteiro.

A forma de agir dos heróis está ficando ultrapassada. Isso é o mesmo que dizer que já não nos importamos mais, ou há bastante tempo, com  a ética, com fazer as coisas de forma clara  e justa. Aos poucos, recomeçamos a repetir o discurso do “rouba, mas faz!”, “nenhum presta!” e as mais desesperadoras frases que se pode ouvir de um povo: “Não importa em quem eu vote, nada vai mudar!” e “Vou votar no menos pior!”.

Por tudo isso, devemos prestar atenção especialmente ao voto dos mais jovens, aqueles com idade entre os 16 e 30 anos, pois, segundo uma matéria publicada em novembro de 2017 pelo portal BBC Brasil, eles votam influenciados pelas redes sociais, aderem a candidatos que fazem uso de frases de efeito e linguagem provocativa. Preferem polêmicas em vez do diálogo e exposição de projetos. Querem alguém que parece dizer o que pensa independentemente do conteúdo. Não importa se tais falas nada são além de performances premeditadas.

Observar o Zeitgeist não garante que anteciparemos comportamentos e resultados, mas aponta tendências que, se não se concretizarem logo também não tardarão a se materializar.

Talvez surja um novo herói, talvez Odin desperte do seu sono (ou exílio), mas uma coisa é certa: se nada acontecer, pelo menos uma coisa acontecerá que é a morte dos heróis imaginários ou o seu esquecimento. Se os tempos são outros, talvez seja hora dos heróis mudarem. De acordo com a teoria darwiniana, sobrevivem não os mais fortes ou os mais inteligentes, mas sim aqueles que se adaptam às mudanças.

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