UMA APOLOGIA DO DIREITO DE NÃO APANHAR

A resistência ao novo

Em novembro de 2003 foi apresentado na Câmara dos Deputados em Brasília o projeto de lei PL 2.654/2003 mais tarde batizada oficialmente como Lei Menino Bernardo e popularmente conhecida como Lei da Palmada, ela só veio a ser aprovada após muita discussão entre juristas, políticos, religiosos e as diversas entidades de defesa dos direitos da criança.

Se por um lado judiciário e políticos em sua maioria aparentemente concordavam com o que era defendido pelas instituições voltadas par os direitos da criança e do adolescente, por outro lado  a bancada evangélica na Câmara de Deputados e cerca de 54% da polução segundo pesquisa do Datafolha  realizada á época, defendiam o contrário. Tal resistência inclusive foi a origem do termo “Lei da Palmada” cujo propósito é minimizar o fato de que na verdade milhares de crianças são diariamente expostas a surras que resultam em dores  e não raramente cicatrizes físicas, como possivelmente traumas psicológicos ou no mínimo conduzem a um aprendizado que contradiz um mundo onde as pessoas dizem que esperam  a pratica da não violência como caminho para solução de desacordos.

Mas quais seriam os argumentos para que pessoas algumas inclusive acostumadas a pregar o amor ao próximo, serenidade e paz, fizessem coro àqueles que defendem a agressão física como caminho para a educação?

Alguns ou pelo menos a maioria dos evangélicos (a bancada evangélica foi a que mais brigou pelo direito dos pais em agredir fisicamente seus filhos quando quiser ou julgar necessário) se apoiou em algumas passagens retiradas do seu livro sagrado como, por exemplo: “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que o ama, a seu tempo, o castiga.”(Provérbios 13:24) e  “Não retires a disciplina da criança, porque, fustigando-a com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Provérbios 23:13 e 14). Aqui se faz relevante mencionar  que a vara de correção nos tempos em que foram escritos tais textos era usada para padronizar medidas de cumprimento e distância, conduzir rebanhos de animais e por fim, açoitar criminosos. Entre educar como alguém que conduz um rebanho pacificamente ou açoitar um criminoso violentamente pessoas de bem deveriam preferir o caminho mais suave, afinal trata-se de seus filhos e devem ser mais amados que ovelhas ou bois.

Ocorre, todavia, que o mesmo livro sagrado retro mencionado possui também ordens como: Também o homem que adulterar com a mulher de outro, havendo adulterado com a mulher do seu próximo, certamente morrerá o adúltero e a adúltera. (Levítico 20:10), As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei.(1 Coríntios 14:34) e Nenhum bastardo entrará na congregação do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará na congregação do Senhor.(Deuteronômio 23:2). No entanto não vemos nos dias atuais cristãos assassinando adúlteros entre os seus ou entre os descrentes. É notório a quantidade de mulheres que ocupam cargos de autoridade nas igrejas. E por fim, quem será que faz o escrutínio de quem é ou não bastardo á porta das congregações? Certamente isso seria impossível de cumprir nos dias atuais alguns diriam! Outros diriam que esta ou aquela lei se aplicava unicamente àquele povo, que tudo tem de ser contextualizado e que na verdade o que o escritor quis dizer foi isso ou aquilo. O fato é que diante da inconveniência qualquer texto por mais sagrado que seja parece poder ser reinterpretado.

Por que então não usamos o poder da interpretação e as fontes de pesquisa para defender os interesses daqueles que não podem defender a si mesmo? Talvez por que já é um costume e sempre foi assim diriam alguns.

Os domadores de cavalos têm algo a nos ensinar.

Ocorre, porém que durante milhares de anos a doma de cavalos foi praticada da forma que parecia ser a melhor e mais simples. Um homem experiente em montaria (o peão) calçando esporas e portando um chicote de couro ou outro objeto que servisse para causar dor, montava sobre o animal e então se valendo de sua experiência e astúcia torturava o animal durante longas horas ao fim das quais, cansado, e não raramente machucado o animal se tornava subserviente. Algumas vezes para condicionar o animal a não empinar eram adicionadas pulseiras de aço ás patas dianteiras que lhe feriam a carne quando retornava de uma tentativa de empine.

Sim. Essa técnica que é chamada de “quebra”, pois seu objetivo consiste em quebrar toda e qualquer resistência do animal, parecia ser o melhor e mais eficiente método de doma.

Entretanto contrariando o estabelecido, no final do século XX o mundo conheceu o método Eqqus desenvolvido pelo norte americano Monty Roberts, o qual consiste em processos de interação entre homem e animal. Conforme descrito por RAMOS (2005) “O método da doma racional é suave para o cavalo, baseia-se no principio da não violência. O cavalo é subjugado pela paciência, o carinho, a aproximação cautelosa, as lições progressivas e repetitivas, sendo recompensando pelos acertos”. Atualmente este é o método aplicado pela maioria das academias militares no treinamento de seus animais.

O método Eqqus é defendido inclusive pelas instituições de proteção dos animais, é copiado já em grande parte do mundo, foi apresentado ao grande público por meio do filme The Horse Whisperer e é descrito em detalhes por seu criador no livro “Horse and Horseman Training”.

Então, após séculos, contrariando o que era estabelecido, o que era o costume, um homem mostra que é possível outra forma de domar cavalos.

Ao demonstrar que sem causar dor e traumas é possível interagir e treinar cavalos, Roberts deveria nos deixar curiosos, pois cavalos não possuem linguagem verbal e diriam alguns: são irracionais. Mas aprendem sem violência.  Se até criadores de cavalos conseguem se abrir para a não violência por que será que pais e mães não conseguem da mesma forma evoluir seus métodos de disciplina?

Os limites do âmbito doméstico.

Outro argumento apresentado por alguns para defender o direito irrestrito dos pais em agredir seus filhos sempre que lhes parecer conveniente consiste na afirmação de que “a educação e disciplina dos filhos é assunto restrito ao âmbito doméstico cabendo a família única e exclusivamente escolher o que fazer e como fazer para tanto, não devendo haver interferência do governo ou de estranhos de um modo geral”.

Ora, até 07 de agosto de 2006 as brigas domésticas por se tratar de eventos ocorridos entre homem e mulher no ambiente privado (ou mesmo público) era no máximo objeto de comentários e críticas de curiosos, jamais resultariam em represálias e até mesmo a prisão para o agressor. Àquela época era comum o ditado popular hoje marginalizado: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher!”.

“Em briga de marido e mulher ninguém metia a colher” até que em 2006 o Brasil conheceu a Lei 11.340 popularmente conhecida Lei Maria da Penha. A partir de então basta que vizinhos, estranhos, médicos, professores (…) ou quem queira, além da própria mulher fazer uma denúncia mesmo que inverídica ou sem comprovação imediata, baseando-se apenas no depoimento do denunciante e o suposto agressor certamente sofrerá repressão policial além de envolver-se num processo judicial que pode até resultar em prisão.

A questão em torno da violência contra a mulher é apenas um exemplo de mudanças que tornaram coisas que antes eram da vida privada e, portanto imexíveis ou escrutináveis algo controlado por leis específicas. Por exemplo, nossos avós se juntavam ou casavam independente da diferença de idade, hoje existe uma idade mínima para que isso possa ocorrer legalmente e quem o fizer ilegalmente está sujeito a penalidades. Antigamente se um crime era cometido “em defesa da honra” tal argumento serviria como atenuante mesmo que se trata-se de um assassinato. E que dizer do incesto e da pedofilia? Existem inúmeros relatos de diversas culturas passadas que a exemplo dos filhos do alegórico casal Adão e Eva praticavam o incesto e sabe-se que a pedofilia era algo comum em culturas como a grega. Certamente é desnecessário dizer que hoje em todo o mundo civilizado a pedofilia é crime e o incesto tratado como tabu.

Se todas essas questões pertencentes ao ambiente doméstico puderam ser reinterpretadas por que persistimos com a bandeira do amplo direito de poder agredir criancinhas com tanto fervor e por que parece ser um mal sem fim?

Transgeracionalidade – o ciclo que não tem fim (?)

Os seres humanos tendem a repetir comportamentos uns dos outros. De acordo com os cientistas do comportamento eles o fazem basicamente por três motivos: a recompensa, a evitação de uma conseqüência desagradável ou simplesmente por que tal comportamento é o mais fácil de ser aplicado diante de determinada situação.

Aqueles que defendem a violência contra crianças como suposta forma de educar não raramente repetem frases como: “eu apanhei e nem por isso morri ou fiquei revoltado”, porém, o que é nítido no comportamento da maioria das pessoas que afirmam ter sido vítimas de agressão por marte de seus pais é um desejo quase que ansioso em repetir com seus filhos o mesmo comportamento. Conforme O’MARA (2013) a agressão nada mais é que um meio desesperado de retomar o controle, diante de situações as quais na verdade o adulto não sabe como agir. Diante do desespero gerado por sua incapacidade opta por agredir, pois isso elimina a frustração que está em curso, por meio da dor que impõe a sua vítima.

Ocorre, todavia que se a criança por acaso objetivando impor sua vontade sobre as escolhas de um coleguinha na Escola, e uma vez exauridos os argumentos optar por agredir-lhe fisicamente para que aceite e siga sua opinião certamente que a maioria dos pais não concordará que essa é a melhor forma de comportamento para uma criança. Mas tal criança estaria apenas recorrendo ao mesmíssimo método utilizado por seus principais modelos de conduta, os pais.

Ao obrigarmos a criança a fazer o que queremos vencendo-o pela força e a imposição da dor ao invés de usarmos do diálogo, estamos produzindo pessoas que mais tarde serão homens agressores que apanharam das mães e agora agridem suas esposas, afinal foi assim que ele aprendeu: quem tem mais força, manda no mais frágil. Na ausência da força física teremos mulheres que abusarão do poder das leis criadas para protegê-las, lançando mão de falsas denúncias como forma de punir os homens que lhes desagradem.  E serão estes mesmos pais (mãe e pai) que educarão filhos para a repetição de um ciclo de violência sem fim de pessoas que usarão do poder que dispuserem de forma abusiva para coagir mais fracos.

Existe um dito popular que afirma: “o que o homem plantar ele certamente colherá!”. Quase que unissonamente as pessoas afirmam que desejam a não violência, reclamam que se cometem assassinatos por quaisquer motivos em nossos dias, todavia, “o que o homem plantar ele certamente colherá” justifica a violência corrente.

Curiosamente, segundo pesquisas realizadas em comunidades do Rio de Janeiro pela CAES-PUCRS (2013), são as mães, portanto as mulheres, quem mais agridem fisicamente as crianças, representando um percentual de 71% das vezes em que a criança sofre agressão física no ambiente familiar. A mesma pesquisa aponta ainda uma diferença de cerca de 10% a mais no que se refere a frequência com que ocorrem as agressões quando a criança é do sexo masculino.

De acordo com CEAFA (2012) “os filhos têm a tendência de repetirem o comportamento social de seus pais”. Segundo o autor os filhos aprendem muito mais aquilo que as atitudes dos pais dizem que é correto do que aquilo que eles falam que o filho deve fazer. Não deveríamos, portanto nos admirarmos se leis continuassem a ser ineficientes para impedir atos de violência no cotidiano.

Parece ser uma questão lógica o ciclo transgeracional que ocorre aqui. Os filhos aprendem com os pais que aqueles que possuem mais força física e podem causar mais dor, devem lançar mão desses recursos se a argumentação e os demais para resolução de problemas falharem. As guerras começam assim.

 

Considerações Finais

O presente texto não tem por objetivo ser conclusivo, mas antes provocar, objetivando a reflexão e autocrítica. O objetivo não é apresentar uma resposta, mas sim propor indagações como: Haveria relações entre as violências domésticas ocorridas na infância e aquelas cometidas entre adultos? Seria a forma que escolhemos para disciplinar as crianças apenas uma desculpa para extravasar nossa ira em um ser indefeso? E principalmente se conseguimos evoluir noutros assuntos por que continuamos relutantes em descontinuar nossa violência contra a criança?

Por todo o exposto, parece pouco razoável se apegar a uma tradição ou hábito por mais que ele esteja estabelecido e seja socialmente aceito apenas por que parece ser o caminho mais fácil a ser seguido.

Falta agora darmos mais um passo adiante e substituir as surras pelo diálogo na hora de disciplinar as crianças. Esse pode ser um pequeno passo para um grande futuro sem violência física ou psicológica contra nenhuma pessoa, sejam homens ou mulheres, idosos ou jovens, mas principalmente para as indefesas crianças.

Imagens: Jill Grimberg

REFERENCIAS

http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1269621.pdf – acesso em 15-Set- 2016

http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2010/07/1223479-54-dos-brasileiros-sao-contra-a-lei-da-palmada.shtml – acesso em 15-Set-2016

http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=GLC777– acesso em 16-Set-2016

Almeida, João Ferreira – Bíblia, Versão Atualizada. (2016)

http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/cap6.asp – acesso em 16-Set-2016

http://www.eseqex.ensino.eb.br/wpcontent/uploads/2013/04/doma_uma_nova_abordagem.pdf- acesso em 15-Set- 2016

http://ceafa.com.br/blog/?p=544 – acesso em 20- Out- 2016

Vieira, Olavo – Mensagens da Cruz –, 2015- versão eletrônica – https://books.google.com.br/books?id=GAKyDAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR – acesso em 18- Set-2016

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