Somos quem podemos ser

Já faz um tempo que venho desiludido quanto aos resultados da educação. Ainda acredito que ela seja essencial, mas já consigo enxergar que não basta. Uma pessoa bem instruída não é garantia de caráter, na verdade ela nem terá a justificativa da ignorância para amenizar seus atos. É claro que estou falando da educação como processo institucionalizado. Para ser visto como autoridade em determinado assunto é preciso o reconhecimento dos seus pares, e é bom que seja assim. Os rituais da academia criam um processo de filtragem e lapidação que costuma impulsionar o desenvolvimento científico.

Em seu romance intitulado Número Zero, Umberto Eco escreveu que “os perdedores, assim como os autodidatas, sempre têm conhecimentos mais vastos que os vencedores, e quem quiser vencer deverá saber uma única coisa e não perder tempo sabendo todas, o prazer da erudição é reservado aos perdedores”. Essa pequena provocação nos esclarece muita coisa a respeito do processo educacional institucionalizado.

A soma de todos os livros publicados, das canções que já foram compostas, das produções cinematográficas, das peças de teatro, das histórias em quadrinhos – por que não? – ou qualquer outra forma de expressão artística, ultrapassa em muito as possibilidades que um indivíduo teria de consumi-las durante uma vida. Mas não é só isso. Quantos idiomas existem no mundo? Quantos sotaques? Quantas composições culturais? Todas essas informações nos chegam de fora. Aprendemos o idioma do nosso entorno, desenvolvemos gostos e inclinações dentro do leque de opções que nos são apresentadas. Um dos benefícios das relações sociais – começando com as relações familiares – é essa triagem que fazem dos conhecimentos que serão úteis para nós. Em parte, é isso que gera a nossa identidade cultural.

A escola serviria para transmitir um saber que vai além do senso comum, de forma organizada e estruturada. Em tese, esses dois processos de assimilação cultural dariam cabo de formar o indivíduo. Restaria a ele fazer um terceiro recorte a partir de suas próprias preferências. No entanto, no meio do caminho tinha uma pedra.

Comecemos pela identidade cultural. Tive alguns colegas, no interior da Bahia, que nunca pisaram no Rio de Janeiro, mas falavam chiando, alongando o “s”, imitando o sotaque carioca. Aquilo era uma óbvia macaqueação do que viam na TV. Era uma demonstração de vergonha do sotaque local, uma tentativa de se apresentar como alguém vindo de fora, que estaria ali de passagem, por puro acaso. Como você deve imaginar, o aparelho fonador, forçado a um tipo de articulação que não estava habituado, misturava tudo e o arremedo beirava o ridículo.

Temos também, na mesma região, os eventos de “cultura japonesa”, que se resumem à reunião de um monte de jovens fantasiados como personagens de mangá ou anime, portando espadas feitas com pedaços de cano de PVC e se digladiando em batalhas simuladas. Não tenho conhecimento de nenhum japonês que participe dessas reuniões, na verdade, não há ninguém ali que tenha um parentesco distante com algum oriental. São jovens negros e pardos. As únicas informações que recebem sobre cultura japonesa são aquelas expostas nas animações ou nas histórias em quadrinhos.

Não entendem nada sobre os valores, os temores ou qualquer outro traço daquela cultura. Não percebem que as representações assimiladas nessas produções do mainstream só representam o modo de vida japonês de forma idealizada e fantasiosa. Para completar, esses mesmos indivíduos pouco compreendem sobre suas próprias identidades culturais. É comum falarem o quanto gostam de mitologia nórdica, mas consideram o candomblé como manifestação demoníaca. Não compreendem o óbvio: mitologias são mitologias.

A escola, por sua vez, deveria ensinar o indivíduo a separar aquilo que é relevante do que é fugaz. Por exemplo: vá a uma livraria qualquer. Você perceberá que alguns livros estão sempre sendo reeditados, outros têm seu momento de destaque, que logo se esvazia e dá lugar à próxima novidade. Esse ciclo é constante, mas, mesmo entre os alunos universitários, são raros os que conseguem entender a simples diferença entre o livro da moda e aquele realmente relevante. Não passa por minha cabeça proibir o consumo de bens culturais para fins de entretenimento, mas fico espantado que já não tenhamos a capacidade de separar as coisas.

Em resumo, Como desenvolver e consolidar o caráter se nem sabemos quem somos? Some-se a isso a conhecida rebeldia dos jovens e teremos a receita para o que vemos aí.

 

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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