Sobre as representações reais em obras de ficção
Ainda hoje, em cursos de literatura, é muito comum a discussão sobre o quanto um texto pode corresponder à realidade. O consenso entre os literatos parece ser que toda obra narrativa é um trabalho ficcional. No entanto, fico com a impressão de que muitos defendem essa tese pro domo sua. Um cidadão que escreveu sobre a relação que mantinha com sua ex-esposa vai alegar que tudo aquilo é ficção, assim ele pode evitar um processo. Não que sua alegação seja mentirosa, a obra é ficcional, mas existe algum nível de correspondência e todos sabemos disso. Sempre que existe autoria, existe o ato consciente de escolher o que será excluído e o que será destacado.
Um desenho caricatural não é a reprodução exata de um indivíduo, mas é possível reconhecê-lo naqueles traços. Esse tipo de trabalho costuma ser exagerado e simplificado ao mesmo tempo, mas, quando bem feito, remete ao indivíduo retratado.
Em artigo escrito para a revista Quatro Cinco Um, a professora Bianca Tavolari (v. Mapa da metrópole inapreensível) destaca uma análise feita por Jorge Luís Borges sobre o desenvolvimento da cartografia. No conto Do rigor da ciência, Borges escreve que “o mapa de uma só província ocupava toda uma cidade”. Imagine um mapa que reproduza de tal modo os detalhes a ponto de ocupar o mesmo tamanho da área apresentada. Qual seria sua utilidade?
Tavolari argumenta que, a “representação e seu objeto precisam ser distintos para que a relação possa se estabelecer; não há representação na completa identidade, há apenas mimese”.
Faço minhas as palavras de Tavolari. Como um mapa precisa ser simplificado e consideravelmente menor que a área retratada, uma obra literária não retrata cenas e indivíduos na sua completude. As simplificações e rearranjos criam algo que corresponde à realidade sem, paradoxalmente, corresponder.
Assim como os livros de história não são a real representação do que aconteceu, mas aproximações simbólicas com finalidade didática, os livros de ficção mantêm uma relação de aproximação e distanciamento com seus personagens. Sempre escolhendo metodicamente o que merece destaque e o que será relegado ao segundo plano.
José Fagner Alves Santos
Sobre o autor
José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.