Sobre a vida de professor

Há pouco mais de dois meses voltei a lecionar. Desta vez, no Ensino Médio da rede estadual. Essa era uma experiência que eu estava buscando havia muito tempo. Devo ter mentido para mim mesmo várias vezes, mas eu estava procurando aquela sensação de micropoder que o cargo emanava nos tempos de minha infância. Seria mais bonito eu falar de sacerdócio ou vocação para o magistério, mas a verdade é que esse desejo estava muito mais associado ao meu narcisismo do que a uma suposta motivação heroica. “Duvido de toda piedade cristã”, dizia Nietzsche.

 

Peço encarecidamente que não me entendas mal. Não sou exatamente um cristão, mas em nossa sociedade é muito comum fingir ter valores associados a esse credo. Minto para mim mesmo, mas não os tenho. Sou apenas mais um egoísta que tenta mascarar seus interesses num simulacro de altruísmo. Sendo assim, na primeira semana de trabalho fiquei extremamente decepcionado com o nível médio dos professores. Pensava com meus botões: “com professores desse calibre, não há possibilidade de o sistema educacional funcionar”. Mas essa arrogância não durou muito. Lá pelo final da primeira quinzena o cansaço bateu.

 

Acordando às cinco e meia da manhã e indo dormir depois da meia noite, meu cérebro já não estava funcionando muito bem (e olha que ele já não é lá grande coisa). Várias vezes esqueci o que estava escrevendo na lousa, cochilei em pé, fiquei irritado com a dor de cabeça que não passava. Torcia por um feriado. Os finais de semanas eram ocupados corrigindo atividades, repassando nota, preparando aulas, respondendo e-mails. Na prática, não havia mais tempo para a leitura descompromissada, para assistir ao novo episódio daquela série. Comecei a perceber o motivo do nível médio do professor ter me desapontado. Os profissionais estavam exaustos, presos num trabalho precarizado, quase sem recursos para executar suas funções, tendo que lidar com alunos desinteressados, vindos de situações de extrema vulnerabilidade.

 

A ficha havia caído[1]. Aqueles profissionais eram verdadeiros heróis. E digo isso sem qualquer traço de romantismo. Continuar realizando esse tipo de trabalho ano após ano, com um salário pífio, em condições insalubres e sem grandes perspectivas de melhora não era para qualquer um. “É preciso ter força, é preciso ter raça”, cantava Elis Regina. Eu não as tinha. Senti que era completamente incapaz de exercer aquela função. Comecei a olhar meus colegas professores com admiração e respeito. Eu não seria capaz de passar anos exercendo aquela atividade. Não naquelas condições.

 

Um colega, professor de física, costumava brincar sobre o cansaço. Nas últimas aulas da noite, já perto das 23h, ele costumava dizer que os olhos estavam cheios de areia. Essa é, de fato, a sensação quando a exaustão começa a dar sinais. “Já está sentido a areia nos olhos?”, perguntava ele em tom de deboche.

 

Existe considerável desunião entre os professores, mas quando a amizade acontece ela parece ser bastante sólida.

 

Os alunos, por sua vez, já não são mais os mesmos de tempos atrás. A falta de interesse é explícita. Não saem do celular, raramente tiram o fone de ouvido, dificilmente escutam o que o professor diz e sabem que não serão reprovados.

 

Seria muito cômodo atribuir a falta de interesse apenas à situação de vulnerabilidade dos alunos, mas a verdade é que existem telas e plataformas no meio do caminho. Os resultados desse grande experimento social ainda não são totalmente conhecidos, mas já se atribui aos aparelhos digitais a culpa pela dificuldade cognitiva das novas gerações.

 

Espero sobreviver até o final dessa nova experiência como professor. A minha admiração por esse tipo de profissional só faz crescer. A consciência de que não sou capaz de exercer essa função – ao menos não nessas condições – permite que fique livre para buscar novas formas de cultivar meu narcisismo.

 

Acta est fabula. Parabéns a todos os professores. Espero que essa espécie não comece a entrar em extinção.

 

José Fagner Alves Santos

[1] Quem ainda usa essa referência nos dias de hoje?

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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