Resenha: Dylan Dog – Mater Morbi

“Os seres humanos são criaturas estranhas e às vezes gostam das coisas mais impensadas… até o sofrimento ou a morte têm seus apreciadores. Mas a doença… dessa ninguém gosta. Diga, já escreveram alguma poesia sobre você? A Morte e a Guerra têm uma coleção inteira…”

Capa da edição da Lorentz à esquerda, e da editora Mythos à direita.

Com roteiros de Roberto Recchioni e arte de Massimo Carnevale, essa história foi publicada originalmente em DD 280, na Itália, no ano de 2010. No Brasil, a editora Lorentz publicou em 2017 e a editora Mythos em 2021, em formatos distintos.

Para quem ainda não conhece o personagem, Dylan Dog é um ex-policial de Londres, que resolveu largar o emprego e se dedicar a investigar crimes que envolvem o sobrenatural, daí o seu apelido “Detetive do Pesadelo”. Sua publicação teve início no final da década de 1980, na Itália, e alcançou enorme sucesso, batendo recordes de venda. Na década de 1990 chegou a vender mais um milhão de exemplares somente no seu país de origem.

Esse volume traz uma história com uma das melhores premissas que já li nos quadrinhos. A antropomorfização da doença.

Introdução à história da edição da Mythos

A história começa com o Dylan Dog adoecendo repentinamente e sendo levado ao hospital por uma ambulância. Ao chegar lá, ele logo é internado e, após alguns exames, descobre que possui uma massa negra dentro do seu corpo. A partir deste momento, Dylan alterna entre delírios, pesadelos e a realidade. Nos momentos de delírios, ele é levado a uma espécie de limbo, para onde vão todas as pessoas com doenças graves ou em fase terminal. Nesse local, o Detetive do Pesadelo conhece um garoto chamado Vincent, que há anos é acometido de uma grave doença e constantemente visita este “outro mundo”. Com a ajuda de Vincent, Dylan aprende como funciona esse lugar, que é governado por Mater Morbi.

Mater Morbi é a mãe de todas as doenças e logo se mostra atraída por Dylan. Durante a trama, é revelado que ela tem um pacto com os médicos desde a época de Hipócrates. Neste acordo, ela criaria doenças e em determinados momentos permitiria a descoberta da cura, gerando fama e fortuna aos médicos; em contrapartida, os médicos prolongariam a vida e sofrimento dos enfermos, assim estes serviriam como brinquedo para Mater Morbi.

Após perceber onde está e ao fim de várias discussões com a “mãe das doenças”, Dylan percebe o quanto ela é solitária. Poetas e músicos escreveram obras ao amor, à morte, à guerra, mas ninguém nunca escreveu nem adorou a doença. Surge então uma paixão entre os dois que dura por toda a vida do Dylan. O final da história é bastante comovente ao mostrar o contraste do final de Dylan e do garoto Vincent.

 

Dylan Dog no reino da Mater Morbi

Essa talvez seja a melhor história que já li da Bonelli. Excepcional. Deveria servir de modelo para roteiristas de quadrinhos e filmes de todo o mundo.

O roteiro de Mater Morbi tem clara inspiração na obra de Sandman, do autor inglês Neil Gaiman. Para quem nunca leu Sandman, aqui temos a personificação de alguns aspectos inerentes ao universo. Eles são chamados de “Perpétuos” e compostos por: Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio. Cada um destes seres tem plenos poderes sobre tudo aquilo que representa, e as histórias presentes na obra ocorrem entorno de Sonho, também chamado de Morpheus ou Sandman. Nessa edição do Dylan Dog, somos apresentados àquela que poderia ser a oitava integrante dos Perpétuos: a Mater Morbi, a Mãe de Todas as Doenças.

Mater Morbi é retratada como uma criatura bastante vaidosa e que adora se divertir vendo pessoas sofrerem. Por várias passagens, ela demostra ter um comportamento sadomasoquista, inclusive levando Dylan para a “Sala dos Chicotes”. Apesar de possuir personalidade forte, o Detetive do Pesadelo descobre o seu ponto fraco, a solidão. E esta é uma das melhores sacadas do roteiro.

Se pararmos pra pensar, facilmente lembraremos poesias ou músicas que de uma forma ou outra exaltam o amor, a morte, a paz, a guerra, o desejo, a felicidade…, mas nunca a doença. Mesmo pessoas em graves quadros de depressão podem desejar a morte para acabar com o sofrimento, mas nunca a doença. Todas as pessoas amam a felicidade e o desejo e todos adoram seus sonhos e alguma dose de delírio, mas ninguém ama nem deseja a doença, e buscam viver longe dela. Nessa história, Dylan consegue, de forma bastante sensível, perceber a solidão de Mater Morbi, e compreende que todo o seu sadismo e maldade são reflexos desse sentimento de rejeição. E se apaixona por ela.

Em uma passagem, quando uma violenta tempestade está para cair sobre Dylan e Vincent, o garoto pergunta se ele não tem guarda-chuvas. O detetive responde que nunca teve um, dando a entender que nunca teve medo dos pesadelos e que não precisa ou não quer se proteger da Mãe das Doenças.

Os desenhos são muito bem feitos. Temos a impressão que Massimo Carnevale é fortemente inspirado no uruguaio Alberto Breccia. A utilização das sombras, que em vários momentos se assimila à do Breccia em “Mort Cinder” é espetacular. Para quem nunca leu, Mort Cinder é um quadrinho argentino publicado originalmente entre os anos 1962 e 64. Em Mater Morbi, a arte possui plena harmonia com o roteiro, o que deixa a história ainda mais carregada de emoções angustiantes.

Exemplo de como a arte do Massimo Carnevale se parece com a utilizada por Alberto Breccia em Mort Cinder

Para quem gosta de ler uma boa história, esta é um prato cheio.

O final

A edição da editora Lorentz é inteira em preto e branco e possui formato 15,5×21 cm. A edição da editora Mythos é um pouco maior, com formato 21×29,5 cm, 104 páginas, com algumas coloridas, capa dura com preço de 74,90, mas pode ser facilmente encontrada com bom desconto no site da editora ou em lojas especializadas.

 

Por Maxson Vieira

 

Sobre o autor

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Formado em Física, Mestre e Doutor em Engenharia Espacial / Ciência dos Materiais. Fã de J. R. R. Tolkien, José Saramago, Sebastião Salgado e Ansel Adams. Passou a infância e adolescência dividido entre Astronomia, quadrinhos, livros e D&D. Atualmente é professor do IFBA.


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