Relendo Memórias Póstumas de Brás Cubas

Tenho relido, nos últimos dias, Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis, porque preciso dar uma aula a respeito do romance.

É incrível como Machado sempre me surpreende. Creio que ele é como Stendhal: quanto mais amadurecemos, mais penetramos no universo do autor, mais despertamos para detalhes que, em leituras anteriores, não tínhamos percebido. São escritores infinitos.

Na verdade, é como se, em nosso papel de leitor, correspondêssemos exatamente ao que o próprio Brás Cubas fala quando comenta um pensamento de Pascal, para quem “o homem é um caniço pensante”. O narrador e protagonista corrige o filósofo francês, dizendo que, na verdade, somos “uma errata pensante, isso sim”. E completa: “cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”

Assim, a cada leitura, ampliamos ou aprofundamos a anterior, até chegarmos à última leitura, que jamais será a definitiva, por mais que possamos viver e reler. Quanto aos vermes, se a sua metafísica não for a de Brás Cubas, na eternidade, ainda estará (segundo seu credo), de alguma forma, aproveitando o que leu.

Não é novidade a presença de Shakespeare na obra de Machado. E quem conhece algumas das citações do primeiro a respeito do sono e de sua relação com a morte, encontra Shakespeare escondido na fala de Brás Cubas, para quem “dormir” é “um modo interino de morrer”, definição perfeita para quem, como Machado, era um burocrata.

O Machado frasista, com suas frases de efeito, às vezes verdadeiros aforismos, também não é nenhuma novidade, mas divirto-me com as tiradas espirituosas, irônicas. “O mundo era estreito para Alexandre”, referindo-se ao imperador, mas “um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas”, sentencia Brás Cubas, mostrando como estamos sempre prontos a nos contentar com muito pouco — às vezes, com pequenas misérias.

Essa sabedoria, por vezes relativista, alcança patamares mais altos quando o protagonista sentencia: “A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana” — frase que usa para se vingar do velho Garcez, responsável por insinuações a respeito de seu relacionamento amoroso com Virgília.

Brás Cubas lembra de seu passado, tratando-se como “um fiel compêndio de trivialidade e presunção”, síntese que o romance comprova de forma incontestável. Mas esse protagonista que nada realiza de significativo tem razão ao dizer que “a franqueza é a primeira virtude de um defunto.”

Machado apresenta um poder de síntese que chega a ser assustador. O que mais precisa ser acrescentado à frase “nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal”? Todos os anos de adultério de Virgília estão aí sintetizados.

Mas a cada decepção que a vida lhe apresenta, Brás Cubas reconhece a sua “dor taciturna”, sombria, calada, a qual ele abraça com a “volúpia do aborrecimento”, definição adoravelmente contraditória, que mostra como podemos nos apegar com exagero inclusive ao que nos contraria, desgosta, perturba.

“Que há entre a vida e a morte”, pergunta-se Brás Cubas — e ele mesmo responde: “Uma curta ponte”.

É exatamente essa ponte que estamos cruzando, . Espero que, nesse breve período de tempo, possamos conversar mais sobre o que amamos: leitura, escrita e criação literária.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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