Os malês e a escrita

Se tem uma coisa que me deixa chateado é o professor que bate no peito, com orgulho, para dizer que não gosta de ler. Longe de mim querer exigir que todo mundo crie gosto pela leitura, mas o professor precisa ter o mínimo de cuidado com o que fala em público, afinal de contas, ele está ajudando a formar as novas gerações.

Nessa última semana tive contato com uma figura dessas. Uma professora muito simpática, por sinal, mas que, durante a distribuição de livros para os alunos, falou em alto e bom som: “eu não gosto de ler”. Eu até tentei brincar: “fala baixo para os alunos não ouvirem”. E ela me respondeu: “eles sabem. Livro é coisa de antigamente e vai deixar de existir em pouquíssimo tempo. Prefiro muito mais assistir a um filme”.

Confesso que até pensei em retrucar, mas de que adiantaria? Normalmente, esse tipo de pessoa fica chateada quando insistimos numa ideia contrária aos seus valores. Normal. Eu também ficaria.

De qualquer modo, fiquei me perguntando como está sendo feita a formação desses professores. Como um professor que não gosta de ler pode criar no aluno o gosto pela leitura? A resposta é simples: não pode.

A leitura não é algo natural. Os seres humanos nascem com a capacidade de aprender a ler, mas precisam ser incentivados a praticar constantemente. A leitura é uma forma de linguagem e não existe a possibilidade de desenvolver fluência numa língua sem praticar.

 

***

Para quem não gosta de ler, a leitura é uma perda de tempo. Como eu vou explicar que a gente desenvolve habilidades cognitivas que seriam impossíveis sem a leitura?

A simples ideia de civilizações complexas como as que temos hoje, são completamente dependentes da prática da leitura e escrita. E sempre que falamos nisso, a gente recorre a exemplos estrangeiros.

Deixe-me contar uma história que aconteceu em solo brasileiro.

Na noite do dia 24 para 25 de janeiro, de 1835, na cidade de Salvador, capital da minha Bahia, um grupo de homens escravizados tentou reconquistar sua liberdade por meio da força.

Segundo dados oficiais, Salvador tinha por volta de 60 mil habitantes na época. Desses, aproximadamente 25 mil eram pessoas escravizadas.

Muitos haviam sido trazidos da Nigéria e alguns desses professavam a fé islâmica. Eram chamados de malês.

A palavra malê, inclusive, vem do iorubá. Imalê significa islamizado.

Os malês eram originários do Sul da Nigéria, do Reino de Benin, ou Benan, como alguns preferem.

Os malês, diferentemente de outros escravizados, eram letrados. Sabiam ler e escrever em árabe. Alguns deles tinham conseguido a autorização dos seus senhores para portar uma cópia do alcorão. Muitos usavam um anel que os diferenciavam na hierarquia dos escravizados.

Eu resolvi perguntar ao professor Ahmad qual a importância da escrita e leitura no universo islâmico.

“Bom dia, professor. Tudo bem?

O Islam é uma religião que valoriza muito o conhecimento, né? Conhecimento didático. Tanto que a primeira palavra que o anjo Gabriel falou para O Profeta Muhammad, que a paz esteja com ele, foi: “leia. Leia em nome do Senhor que te criou. Quer dizer, falou leia. Não falou leia o Alcorão ou leia apenas este livro. Falou leia. E o Profeta se tremendo todo. Ele acabou lendo. Tanto que você não vê analfabeto nesses países, nos países árabes, nos países islâmicos. O índice de analfabetismo lá é muito baixo justamente por conta do Corão. A pessoa aprende a ler e não esquece. Por conta disso, os malês acabaram tendo esse conhecimento. Porque a maioria dos escravizados não tinha esse conhecimento. Mas os malês, sim. Por causa do Corão. Conhecimento em árabe é eilm.”

Se a Revolta dos Malês tivesse dado certo, hoje teríamos uma república islâmica da Bahia.

“Então, a Bahia seria uma república islâmica mesmo, né? Uma vez meu pai disse que, quando era recém-chegado ao Brasil, havia aprendido a ler em português e tal, ele viu numa revista: República Islâmica da Bahia. Para você ver a importância que teve lá, né? E realmente, foi isso, se não tivesse um traidor, talvez tivesse vingado. E tanto que essa tradição que existe na Bahia sobre os patuás vem daí. Porque os malês tinham [essa tradição]. Eles costuravam o patuá, que tinha ditos, passagens do Corão dentro. Quer dizer, isso aí é uma coisa bem islâmica da época. E tem vários traços, se for procurar mesmo, na Bahia, tem muito traço islâmico ainda lá.

***

Havia muito tempo eles planejavam uma conspiração para tomar o poder na Bahia. O plano era matar ou escravizar todos aqueles que não fossem islâmicos.

Eram 600 pessoas participando desse movimento revolucionário. No entanto, sempre existe um traidor. Nesse caso, uma traidora, a Guilhermina de Souza, esposa do Fortunato, que já fizera uma denúncia antes da própria Guilhermina.

Foi ela quem relatou para as autoridades o local em que os líderes da revolução se reuniam. Era no porão de uma casa que ficava na Ladeira da Praça. Lá morava um homem chamado Manuel Calafatti. O líder da Revolta era um escravizado islâmico chamado Pácifico Licutan, que estava preso na época. Uma das primeiras atitudes da Revolta seria tentar libertar Pacífico.

O plano era começar o ataque quando a maior parte da população estivesse reunida na Igreja do Bonfim. Afinal, o dia 25 de janeiro era o dia de Nossa Senhora da Guia. Os cristãos costumavam se reunir na Igreja do Bonfim para comemorar. Naquele ano, o 25 de janeiro coincidia com o fim do Ramadan.

Antes que a manhã do dia 25 raiasse, houve uma denúncia. Os malês escaparam às pressas e não tiveram alternativa além de precipitar o plano.

Tentaram libertar Pacífico Licutan da cadeia, mas a polícia já estava preparada. Mais de 80 pessoas foram presas. Todos condenados à morte. Desses, quatro foram de fato executados.

Muitos foram açoitados, alguns foram mandados de volta para a África, outros foram indultados.

Pácifico Licutan foi condenado a 1200 chibatadas. Nenhum ser humano sobreviveria a isso. Não há registros sobre o que aconteceu com ele.

Ao todo, foram 70 mortes, 500 prisões e 60 pessoas deportadas.

Os escravizados que não sabia ler ou escrever também tiveram seus movimentos de resistência, mas é muito mais fácil se organizar em sociedades mais complexas quando se tem o domínio das letras.

A literatura está presente em todos os povos, mesmo naqueles que não possuíam a grafia.

A literatura se manifestava por meio das músicas, dos rituais, das histórias contadas oralmente, dos credos religiosos. Não existe sociedade sem literatura, do mesmo jeito que não existe sociedade sem religião. Quer dizer, ainda não existe, pode ser que, no futuro, essa venha a ser uma realidade. Mas a arte de ler e escrever eleva a complexidade dessas sociedades, desenvolve habilidades importantes e nos permite participar de forma mais desenvolta do debate social.

Se continuarmos formando mal nossos professores, e consequentemente nossos jovens, nossa sociedade está fadada ao fracasso.

Eu não posso convencer o professor já formado a gostar de ler, mas posso tentar influenciar os pequenos, que ainda estão em fase de formação.

José Fagner Alves Santos

Aperte o play e comece a ouvir.

Seu comentário é muito importante para nós.

Assine o nosso Feed.

Página com todos os episódios aqui.

Ouça também no 

Sobre o autor

Website | + posts

José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Últimas publicações