O que o filme “Extraordinário” e a imagem do menino negro na beira do mar têm a nos revelar

Bastou a exibição do trailer para que fosse provocada uma verdadeira comoção e compaixão em muitas pessoas, que se sensibilizaram logo com as primeiras cenas e manifestaram o desejo de acompanhar o filme nos cinemas. Trata-se do longa Extraordinário, que estreou nos telões do Brasil no dia 7 de dezembro de 2017 e permanece em cartaz atraindo públicos das mais diversas faixas etárias.  

O motivo para a boa repercussão da produção está na história vivida pelo protagonista da trama: o garotinho Auggie (papel de Jacob Tremblay, que também arrebentou em O Quarto de Jack) e sua dificuldade em se aceitar e enfrentar preconceitos alheios por ter nascido com uma deformação facial, que o fez passar por vinte cirurgias. Extraordinário aborda o momento em que Auggie frequenta a escola pela primeira vez – até então ele tinha aulas com sua mãe (Julia Roberts), pois ela e seu marido (Owen Wilson), pai do menino, ficavam receosos quanto ao preconceito que ele sofreria.

O receio dos pais se transforma então em realidade, pois basta o menino dar o primeiro passo no ambiente escolar para se tornar uma vítima frequente do bullying que o assola constantemente. Apesar de tudo, conforme os dias passam, o menino se mostra um exemplo de superação entre quedas e levantes, pela forma como encara o deboche dos demais garotos que satirizam e ridicularizam sua condição física. Mesmo acompanhado de um amiguinho que, a princípio, parece se mostrar seu companheiro, há momentos em que o protagonista se revolta com os próprios pais e com a irmã mais velha (papel de Izabela Vidovic) – esta, muitas vezes, incomodada com a falta de atenção dos pais, toda depositada no irmão – por ter que aturar a escola e as perguntas de como está indo no ambiente escolar.

O filme vale pela atuação de todo o elenco, com destaque para o pequeno Tremblay, que encara com facilidade e seriedade um papel que exige maturidade e envolvimento para não cair no estereótipo e, principalmente, pelo peso da própria história e o exemplo de superação que ela nos traz. Mas aqui abro um parêntese para discutir a forma como a imagem do menino pode ser encarada pelo público e o porquê de tal história provocar tamanha comoção.

Na internet, em roda de conversas e dentro do cinema, quando fui assistir ao filme, uma das palavras mais ouvidas a respeito do garoto foi “coitadinho”, “que peninha dele”, “que tristeza!”. O termo “Extraordinário” que intitula o filme, ganha a conotação de Excepcional, Exceção e afins, pois somos condicionados a nutrir um sentimento de pena pela “vítima”. Tudo o que uma pessoa como o Auggie deseja que não tenham dele, pois já basta o bullying sofrido em sala de aula diariamente. O papel da irmã mais velha no filme é fundamental para nos atentarmos a esse aspecto. Adolescente, a garota enfrenta os conflitos típicos desta idade, como a melhor amiga que se afasta dela, o primeiro namorado…, sem o apoio dos pais, tão importante nesta fase, pois ambos estão focados no irmão dela.

Num dado momento da trama, ao ver Auggie reclamando dos colegas, ela o questiona e diz a ele que todos têm problemas. Já em outra cena, ela lhe diz que o mundo não gira ao redor dele e que ele não poderia condicionar tudo ao seu problema físico. Mas façamos uma pausa: o menino está apenas no quinto ano, tem uma deformação facial e ainda precisa lidar com a provocação dos colegas que o apelidam dos piores nomes possíveis, enquanto sua irmã não apresenta problema físico algum.

Ok! Não estou descreditando a gravidade da situação que, infelizmente acontece corriqueiramente com crianças que possuam alguma deficiência. Mas enfatizando que, justamente pelo fato de o protagonista apresentar tal deformação, enxergá-lo unicamente como alguém digno de pena é não valorizá-lo e não acreditar no seu potencial de superação. Algo que o garoto da trama faz muito bem ao enfrentar seus colegas, revelando uma surpresa até para seus pais, que tinham medo de sua entrada na escola.

Trata-se de uma distorção interpretativa provocada por um condicionamento prévio de enxergamos o outro como inferior. E não atribuo culpa a tal comportamento, pois, às vezes, tendemos a agir assim inconscientemente. Outro exemplo: uma foto tirada na passagem de ano de 2017 para 2018, pelo fotógrafo Lucas Landau, causou diversas manifestações nas redes sociais. O registro era de um menino negro observando, na beira do mar, os fogos do réveillon, enquanto um grande grupo de pessoas de costas para o garoto festejava o momento. Imediatamente após a divulgação da imagem, diversos internautas, inclusive esta autora que vos escreve, comentaram a respeito da desigualdade social levantada pela foto. Mas tudo isso apenas por que se tratava de um menino negro?

 

Foto Lucas Landau (clique na imagem para ampliar)

Várias repercussões depois, descobriu-se que o menino da imagem era apenas alguém observando os fogos e não um morador de rua ou um marginalizado, como preconizado por muitos. Mais uma vez, a interpretação ultrapassou as margens da foto e ganhou contornos próprios, assim como no caso do filme, fomentada por opiniões já consolidadas de acordo com a realidade em que cada um está inserido. Pois tendemos a enxergar tudo segundo nossas formações e desconstruir esse olhar viciado é um desafio. Desafio este que precisa ser encarado para que realmente possamos olhar o todo e adentrar nos demais contextos, inspirados nas palavras do próprio protagonista de Extraordinário:

“Se quiser saber como as pessoas são, tudo o que precisa fazer é olhar”.

Sobre o autor

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Mestra em Ciências Humanas. Jornalista. Especialista em Metodologia do Ensino na Educação Superior e em Comunicação Empresarial.
Assessora de Comunicação. Blogueira de Cultura e de Mídias.
Sou apaixonada por programas culturais – principalmente cinema, teatro e exposição – e adoro analisar filmes, peças e mostras que vejo (já assisti a mais de 150 espetáculos teatrais). Também adoro ler e me informar sobre assuntos ligados às mídias de modo geral e produzir conteúdos a respeito.


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