O pregador

Lá vinha eu, caminhando de volta para casa, quando dei de cara com um grupo de pessoas – homens, mulheres, crianças e idosos – batendo à porta dos vizinhos. Vestiam roupas sociais, cabelos bem arrumados. Cada um carregava seu próprio exemplar da Bíblia. “Testemunhas de Jeová”, pensei automaticamente. Percorri as imediações com os olhos em busca de algum lugar pelo qual eu pudesse fugir sem ter que dialogar com o grupo.

Para onde eu olhasse só via mais e mais deles. O confronto era inevitável. Antes de continuar com essa narrativa, preciso pedir desculpas ao amigo leitor, principalmente no caso de ser você um membro dos Testemunhas. Peço misericordiosamente que não fique chateado comigo. Não é discriminação com o seu credo, mas confesso que não tenho paciência com religiões de modo geral.

Me tornei ateu por volta dos 19 anos. Depois disso fiz certo esforço para recuperar a fé, mas foi inútil. Acredito que exista algo em mim que dificulte a crença em coisas místicas. Não que a explicação darwinista seja isenta de misticismo. A crença no processo evolucionário é, muitas vezes, tão difícil de acreditar quanto a do criacionismo. E posso garantir que não sou o único a pensar assim. O teólogo Alan Wilson Watts certa vez escreveu que, “o ser humano foi considerado um golpe de sorte, um acaso estatístico, com a mesma chance de que milhões de macacos batendo em milhões de máquinas de escrever durante um milhão de anos acabassem por escrever a Enciclopédia Britânica. A visão do ser humano como golpe de sorte não é muito diferente do ser humano como produto da excentricidade divina”.

Eu sei que a comparação é meio simplista, um pouco ingênua até, mas eu sou uma pessoa inconstante. E há momentos em que argumentos como este me parecem muito sólidos.

Mas, voltemos para o meu conflito com a turma de pregadores. Como sempre, fui abordado por dois ou três deles. Me ofereceram um folheto com um aviso apocalíptico e pediram permissão para ler um versículo bíblico. Seria implicância da minha parte negar esse prazer aos evangelizadores. Fiz de conta que estava sendo evangelizado.

– Está escrito aqui, em Marcos, capítulo um, versículo 15: “e dizendo: o tempo está cumprindo, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho”.

– An-ham

– Leve este folheto. E leia com calma em casa.

Reparei que um dos rapazes que falava comigo me era familiar. Na velocidade em que só o cérebro é capaz fui transportado para o passado, para uma época da minha adolescência. Eu estava logo ali, no hall da casa da minha mãe. Já devia ser por volta das 20 h de um sábado. Era comum ficar ali namorando durante a noite. Entre um amasso e outro me apareceu um caboclinho mirrado com a Bíblia na mão perguntando se poderia ler um versículo para mim.

– É que agora estou meio ocupado – respondi meio sem jeito.

– É rapidinho – insistiu o pregador.

Aquiesci com um movimento de cabeça. Ele abriu o livro sagrado numa página aleatória e começou:

– O se… nhor… O senhor… Será que você poderia ler este trecho para mim? É que eu tenho dificuldade.

No princípio achei que era piada. Fiquei olhando para ele por um tempo, incrédulo. O caboclo pregador não sabia ler e mesmo assim se arriscava a sair para evangelizar. Deu uma vontade muito grande de gargalhar, mas fiquei com vergonha. Como diria minha avó: “quem tem vergonha não envergonha os outros”.

Li o trecho que ele pediu e cheguei, até mesmo, a esboçar um arremedo de explicação interpretativa sobre o que havia lido.

O pregador agradeceu pela cordialidade e perguntou o meu nome.

– Fagner

– Que nome engraçado. O meu é Xoxonildo.

Não preciso dizer que quase engasguei. Voltando ao presente, era Xoxonildo que estava ali pregando para mim mais de uma década depois.

Percebi que agora ele já estava alfabetizado e que tinha fluência melhor ao falar. Provavelmente por conta dos anos de prática na evangelização.

Agradeci a atenção e entrei em casa rindo feito um louco. Minha mãe perguntou do que eu tanto ria.

– Melhor deixar pra lá – respondi.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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