O Papel do Jornalismo e a Confusão entre Informação e Publicidade

O falecido jornalista e professor Dirceu Fernandes Lopes costumava repetir uma frase que, embora não fosse de sua autoria, é extensamente citada entre profissionais da comunicação: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade.” Ouvi essa máxima pela primeira vez dele, e ela nunca deixou de ecoar em minha mente, especialmente ao observar como o jornalismo é praticado em algumas localidades. A exposição colocada nessa frase sugere que o jornalismo genuíno implica revelar verdades inconvenientes e desconfortáveis, distanciando-se da bajulação ou da mera reprodução de interesses.

Porém, ao analisar o cenário da imprensa na cidade de Ipiaú, no Sul da Bahia, essa definição parece cada vez mais distante. No período pós-eleitoral, é comum encontrar jornalistas locais enaltecendo figuras políticas, especialmente a prefeita eleita, em tom de idolatria. Em vez de investigações sobre promessas de campanha ou análises críticas sobre os primeiros passos da gestão, o que se vê são adjetivações exageradas e desnecessárias, como apelidá-la de “tigresa”. Essa prática levanta uma questão fundamental: estamos consumindo jornalismo ou apenas uma publicidade disfarçada de informação?

A Degradação da Crítica e o Elogio como Estratégia

O problema não se restringe a Ipiaú. Essa prática de tecer loas a figuras públicas é sintomática de um público mais amplo: o enfraquecimento da crítica no jornalismo local. Jornalistas que deveriam atuar como vigilâncias da democracia tornam-se instrumentos de legitimação dos poderes constituídos, seja por conveniência, interesses econômicos ou pressão política. Tal comportamento contradiz os princípios do jornalismo investigativo, que exige distanciamento crítico para questionar aqueles no poder e, assim, garantir uma sociedade mais informada e justa.

Essa atitude complacente pode ser explicada por uma série de fatores. Nas cidades menores, a dependência econômica da mídia local em relação aos recursos públicos – principalmente por meio de verbas de publicidade institucional – é um fator determinante. Quando os veículos de comunicação se tornam financeiramente dependentes da administração pública, o exercício da crítica pode ser comprometido, e a bajulação pode se transformar em uma estratégia de sobrevivência.

Ainda que o jornalismo das grandes capitais também seja competitivo e semelhante, há uma diferença crucial: nesses centros, o público e a crítica especializada são mais exigentes, tornando mais difícil para jornalistas e veículos de imprensa deslizarem para a mera publicidade sem serem questionados. Já em cidades menores, essa fiscalização tende a ser mais frouxa, permitindo que assessores de comunicação assumam um protagonismo disfarçado de jornalismo, sem grandes repercussões. No entanto, é necessário alertar que essa proximidade excessiva com o poder prejudica a contrapartida da mídia e mina a confiança da população nos veículos de comunicação.

Jornalismo e Assessoria de Imprensa: Fronteiras Turvas

A confusão entre jornalismo e assessoria de imprensa é um dos grandes desafios contemporâneos da comunicação. Embora ambas sejam funções legítimas e importantes, elas têm propósitos diferentes. O jornalismo tem como compromisso primordial a verdade e a prestação de contas à sociedade, enquanto a assessoria de imprensa busca moldar a percepção pública de uma instituição ou figura pública, promovendo seus interesses e imagem.

Em Ipiaú, essa distinção parece cada vez mais esmaecida. O problema não está na existência de assessores de imprensa, que têm seu papel e função claros, mas na forma como alguns profissionais de comunicação se comportam, abdicando do papel de questionadores e assumindo o de porta-vozes de políticos. Isso enfraquece a democracia local, uma vez que a imprensa deixa de cumprir sua função fiscalizadora e contribui para a manutenção de uma visão idealizada e acrítica do poder.

Nas grandes capitais, é comum que assessores de imprensa tentem influenciar uma pauta jornalística, mas a diferença é que esses profissionais relatados são tratados como jornalistas de fato. Em ambientes mais competitivos e com maior pluralidade de veículos, a pressão pela verdade prevalece em muitos casos, o que mantém alguma separação entre a informação pública e a propaganda. No entanto, quando essa divisão é ignorada, tanto nas metrópoles quanto nas pequenas cidades, quem sai perdendo é o cidadão, que passa a ser alimentado por conteúdos pouco confiáveis.

O Impacto na Credibilidade e na Formação de Opinião

Quando jornalistas atuam como promotores políticos, a substituição da mídia é corroída. A confiança do público nos veículos de comunicação depende justamente da percepção de imparcialidade e independência. Essas características são dignas de discursos elogiosos e coniventes, a mídia perde seu papel como fonte de informação confiável e se transforma em mera ferramenta de propaganda. Esse cenário é perigoso não apenas para o jornalismo, mas também para a formação da opinião pública, que passa a ser baseada em narrativas incompletas e manipuladas.

Em um mundo onde as notícias falsas circulam com rapidez e em que as redes sociais amplificam a desinformação, o papel da imprensa torna-se ainda mais relevante. A sociedade precisa de jornalistas que desejam investigar, confrontar e esclarecer, mesmo que isso implique desagradar poderosos ou romper com interesses específicos. A crítica responsável é um dos pilares de uma democracia saudável, e abrir a mão dela em nome da conveniência é um risco que não podemos dar ao luxo de correr.

O Desafio de Resgatar o Jornalismo Crítico

O jornalismo, especialmente em cidades menores como Ipiaú, precisa resgatar seu compromisso com a verdade e com a sociedade. Isso não significa adotar uma postura radicalmente oposicionista, mas sim exercer uma crítica honesta e embasada. O papel do jornalista não é apenas informar, mas também questionar e provocar reflexões, contribuindo para uma sociedade mais consciente e engajada.

A dependência econômica dos veículos de comunicação locais em relação ao poder público é um desafio real, mas não pode servir de justificativa para a abdicação dos princípios éticos da profissão. Cabe aos jornalistas, mesmo em condições adversas, manter sua integridade e buscar alternativas para sustentar uma prática profissional que faz jus ao nome do jornalismo.

É essencial que o público desenvolva uma postura mais crítica em relação ao que consome na mídia, exigindo conteúdo de qualidade e questionando a parcialidade quando necessário. Só assim será possível fortalecer o papel da imprensa e garantir que ela continue sendo uma ferramenta indispensável para a democracia. Afinal, como bem lembrava Dirceu Fernandes Lopes, o jornalismo de verdade é aquele que incomoda – e é justamente esse incômodo que nos mantém alertas e informados.

J. Fagner

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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