Meus amigos que não leram Machado

A análise de um livro ou autor feita por alguém que nunca o leu é fenômeno curioso que reflete o nível da nossa percepção cultural

 

É muito chato perceber que a maior parte dos nossos amigos de infância e adolescência ficou para trás. Pessoas que possuíam um imenso potencial de desenvolvimento, mas que, por N motivos, não foram muito longe. Continuam sendo boas pessoas, mas os interesses em comum, a percepção do universo ao redor, a compreensão de questões que parecem rudimentares, são fatores que dificultam o diálogo.

Não estou falando de indivíduos com opiniões diferentes. Esses são sempre bem-vindos – quando sabem argumentar – porque me fazem rever minhas certezas. Refiro-me àqueles que são, muitas vezes, incapazes de compreender uma simples linha argumentativa. Eu sei que esse papo parece conversa de quem se acha intelectualmente superior – e talvez até seja –, mas a minha intenção aqui não é a de diminuir ninguém. Quero apenas desabafar minha frustração com alguns indivíduos que insistem em debater e/ou justificar temas dos quais não possuem o menor conhecimento.

Para não entrar em questões políticas e impedir que isso aqui vire uma arena de guerra partidária, vou citar uma curiosidade da área literária – afinal, esse é o nosso tema nas segundas-feiras.

Dos escritores brasileiros, meu favorito é o Joaquim Maria Machado de Assis. É possível que o seu escritor favorito seja um outro, não há problema nenhum. É até possível que você não goste do Machado, também não há o menor problema. Todos sabemos que os gostos são muito subjetivos. No entanto, tenho notado, já há algum tempo, uma linha argumentativa de depreciação do autor de Dom Casmurro que não faz o menor sentido.

Deixe-me explicar: algumas pessoas – não uma ou duas, mas várias – vieram argumentar que não suportam os livros de Machado porque ele é extremamente minucioso em suas descrições. Alguém tentou me explicar que ele descreve até “a asa da xícara que o personagem está usando para tomar café”. “O excesso de detalhes”, argumentam, “deixa a leitura cansativa e enfadonha”.

“nem marinha nem paisagem, não soube de nada…” ou ainda: “eu não sei descrever nem pintar” MACHADO de Assis, Joaquim M. – Memorial de Aires, 28 de outubro de 1888 e 22 de outubro de 1888

Bem, por onde eu devo começar? Conheci a obra de Machado aos 16 anos. Já ouvira falar dele na escola, mas nunca lera nada. Encontrei uma edição de Dom Casmurro no meio de outros livros num canto qualquer de casa. Comecei a folhear e percebi que os capítulos eram curtinhos. Por curiosidade, li o primeiro. Foi rápido e divertido. Fiquei curioso para ler o segundo, e o terceiro, até que terminei o livro sem perceber.

Não foi obrigação escolar, não foi recomendação de um adulto. Eu apenas comecei a ler e gostei. É claro que não compreendi tudo na primeira leitura, mas achei o livro extremamente divertido. O texto era muito próximo da oralidade. A voz do narrador era o que mais ficava exposto. Parecia que ele estava conversando comigo.

Diferentemente de outros autores que eu já havia tentado ler, Machado não fazia grandes descrições da paisagem, do ambiente, ou da asa da xícara, como alegam alguns. Sua prosa era direta, e foi justamente isso que me encantou. Gostei tanto que fui ler os outros livros dele. Descobri que seus primeiros livros publicados não eram tão bons. Li, inclusive, um livro contendo a correspondência do autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Cartas que ele trocava com seus contemporâneos, como José de Alencar, José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Capistrano de Abreu e Quintino Bocaiúva. São mais de 200 textos.

Em resumo, eu gosto mesmo do Machado, e sei que ele não era um autor que exagerava nas descrições. Qualquer um que o tenha lido sabe disso. Por que então algumas pessoas mantêm essa linha argumentativa? Não sei. Talvez queiram justificar sua falta de interesse por um autor que nunca leram, e exatamente por isso não possuem conhecimento suficiente para argumentar.

O fato é que outros indivíduos ouvem esse tipo de coisa e saem repetindo. Em pouco tempo isso pode virar um cacoete argumentativo, semelhante ao balão no livro “A volta ao mundo em oitenta dias”. O balão não está presente no livro, mas é a primeira imagem que vem à mente dos que não leram. Nessa mesma linha argumentativa há a queda do cavalo sofrida por Saulo de Tarso. O texto diz que ele “caiu por terra”, mas a versão que se consagrou é a da queda do cavalo.

Como argumentar com pessoas que fazem esse tipo de exposição? Não sei. Se o momento for favorável e se eu tiver intimidade o suficiente, posso tentar explicar que não é bem assim, posso tentar expor os fatos e as provas de forma calma e pausado. Caso o cidadão se mostre agressivo ou reticente, prefiro ignorar e mudar de assunto. É preciso saber escolher as lutas que vamos travar. Gastar energia com algo que você sabe que não vai dar resultado não é uma atitude muito inteligente. Se bem que eu sou meio burrinho.

 

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

Website | + posts

José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Últimas publicações