Jornalista Baiano descreve ritual do Santo Daime de Peruíbe

“Da última vez em que trouxeram um bebê para a cerimônia ele não parava de sorrir. Gargalhava gostoso e esticava o braço para tentar tocar nos anjos e espíritos em volta”, contava Reginaldo Agostinho à Patrícia Paiva Carmelo, enquanto ela acomodava Gabriela – sua filha de quatro meses – no carrinho de bebê. Estavam na parte interior do galpão em que aconteceria a cerimônia minutos depois.

A cerimônia, aliás, deveria ter começado – estava marcada para 11 horas –, mas alguns membros haviam se atrasado por conta de afazeres pessoais.

Sentado sobre uma das paredes laterais, Agostinho relembrava cerimônias anteriores. Ele frequenta o grupo Céu de Juréia há dois anos. Conheceu o ritual numa viagem a Manaus, há dez anos, por meio de uma amiga que freqüentava, junto com ele, a Igreja Messiânica. Ela o chamou para uma visita.

O galpão onde seria realizado o encontro fica na estrada do Lontra, na zona rural de Peruíbe, no litoral sul de São Paulo. Para alcançar o lugar onde celulares não funcionam, é preciso abandonar o asfalto da rodovia Padre Manoel da Nóbrega e encarar mais oito quilômetros pela estrada Armando Cunha, uma vicinal pavimentada em parte pelo falecido deputado Oswaldo Justo, que possuía um sítio no local.

Quando o asfalto termina, a Armando Cunha vira um leito de cascalho, com uma paisagem de búfalos, principal criação de animais do município. A peregrinação prossegue em outra estrada de terra, que te aproxima da Serra do Mar e, finalmente, do galpão e da sede do Céu da Juréia.

O galpão era coberto com eternit e enfeitado, na parte interna superior, com bandeirolas semelhantes àquelas utilizadas em festas de São João e São Pedro. As paredes laterais não passavam de 80 centímetros de altura, que permitia boa visibilidade do interior do galpão, independentemente de que lado se estivesse. Na parede do fundo, em alto relevo, uma paisagem de montanhas sob as figuras de uma lua, uma estrela de seis pontas e um sol amarelo. A lua e a estrela pintadas de branco, as montanhas em verde e todo o resto da parede em azul anil, em um mosaico de cores que simbolizam o sincretismo do ritual.

Encostada nessa parede, fica uma pequena mesa que faz às vezes de altar, com uma cruz de seis pontas e as garrafas contendo o chá da ayahuasca. No centro do galpão, outra mesa com uma imagem de São José carregando o menino Jesus aos pés de outra cruz de seis pontas. Quatro velas – uma em cada lado da mesa – descansavam dentro de candelabros de vidro à espera do início da cerimônia para que fossem acesas. Em torno da mesa, cadeiras plásticas brancas se misturavam com cadeiras de madeira numa espécie de círculo concêntrico. No ritual de Santo Daime, os homens se sentam sempre do lado direito e as mulheres do lado esquerdo para que possam fluir mais facilmente as forças do yin e yang.

Agostinho conta que foi abandonado pela mãe quando criança. Segundo ele, isso o tornou uma pessoa muito tensa, que “sempre buscava algo que eu não sabia o que era. Apenas sentia aquele vazio que nada preenchia”.

Formado em engenharia civil, mas trabalhando com comunicação, Agostinho buscou diferentes religiões. Há 15 anos, foi acometido de uma progressão da retinose pigmentar, uma doença que prejudica a visão noturna. Depois disso, a busca se intensificou até que se encontrasse no Santo Daime. “No Daime, eu recuperei minha individualidade, meu equilíbrio mental, minha psique”.

Do lado de fora, dois homens tentavam manter acesa uma pequena fogueira alimentada com galhos e folhas secas. Comentavam entre si dos preconceitos sobre o Daime. “E veio me dizer que a gente se isolava para poder ficar se drogando sem que ninguém incomodasse”, disse Paulo Azevedo, que freqüenta o Daime desde 2006. O interlocutor, não identificado, balançava a cabeça de um lado para o outro em tom de desaprovação enquanto respondia: “as pessoas gostam de falar sobre o que não conhecem. Minha mãe é evangélica e ainda hoje não aceita a minha decisão”.

Um pouco mais à frente, depois da pequena ponte rústica na entrada, sentado num tronco na horizontal, que faz às vezes de banco, estava José Roberto Rodrigues Alves. Beto, como é conhecido pelos amigos e colegas, esperava pacientemente pelos membros restantes, enquanto tragava seu cigarro de fumo enrolado na palha de milho e afixado a uma forca de madeira que evitava amarelar seus dedos.

Beto tem 50 anos, três filhos, é arquiteto e conduz as cerimônias que acontecem duas vezes por mês no Céu da Juréia.

Já passa do meio dia e os membros restantes chegam em seus carros ou de carona com algum irmão de fé.

A sede do Grupo Céu da Juréia é cercada de Mata Atlântica, com trilha sonora contínua de pássaros, o que convida ao relaxamento, aperitivo para o transe que marcará – mais tarde – o auge do ritual.

Entre aqueles que acabaram de chegar está Carlota Carolina. Moradora da vizinha Itanhaém, Carlota diz buscar autoconhecimento. “Eu descobri o Daime pesquisando por outras coisas que me interessam como o xamanismo”.

Os métodos de preparo variam conforme a tradição de cada local e da ocasião em que o consumo se dá. De qualquer maneira, o processo é longo e leva quase um dia para o preparo. As diversas beberagens geralmente contêm talos socados do cipó caapi mais as folhas da chacrona.

Mas o Grupo Céu da Juréia, que existe há 12 anos, ainda não pode realizar o ritual de preparo do chá. “É necessário regularizar toda a documentação, formalizar tudo antes de termos autorização de preparar o chá. Estamos na luta, mas ainda não conseguimos o dinheiro. Chega a quase R$ 1700”, justifica Beto.

Dois membros passam um defumador no ambiente, sinal de que a cerimônia começaria em breve. Um homem o faz no lado direito. Depois, ele entrega o defumador a uma mulher, que repete o processo no lado contrário. Alguns membros ainda não estão vestidos a caráter. Estes correm – separados por sexo – para os quartinhos existentes no fundo do galpão.

Alguns segundos depois, começam a aparecer os fardados.

Os participantes se reúnem ao redor da mesa no centro do galpão. Os homens entram em fila pela direita; as mulheres, pela esquerda. Os homens vestidos com calça azul e camiseta branca; as mulheres, com saia azul e blusa branca.

À medida em que todos se acomodam, alguns irmãos de fé trazem instrumentos. Dois violões, um atabaque, um maracá, um acordeon. Vozes masculinas e femininas se complementam num canto à Iemanjá. O Santo Daime tem considerável valor sincrético, em especial com o umbandismo e com o kardecismo.

A entoação fica cada vez mais ritmada, enquanto mais pessoas se sentam à roda. Os cânticos prosseguem por mais 30 minutos. Beto finalmente começa a acender as quatro velas da mesa central e há uma pausa na cantoria.

Levantam-se lentamente e um deles grita, “eles não vão tomar nada?”, se referindo ao grupo de repórteres que acompanham a cerimônia, fotografando e anotando. Os membros começam a rezar o Pai Nosso numa versão em que diz: “nós vamos ao Vosso Reino”. Bem diferente da tradução oficial de João Ferreira de Almeida (tradutor da versão mais usada da Bíblia no Brasil) que diz: “venha a nós o Teu Reino”.

Em seguida, o grupo emenda com a oração à Ave Maria, retornando ao Pai Nosso e novamente à Ave Maria.

As orações parecem funcionar como um processo purificador. Beto e Paulo Azevedo se dirigem para a mesa ao fundo. Abrem as garrafas contendo o chá e começam a servir a homens – enfileirados pela direita – e mulheres – enfileiradas pela esquerda. Cada um recebe um copo de 250 ml.

O chá do Daime costuma causar náuseas em quem não está acostumado, o que conseqüentemente pode gerar vômitos e tonturas. Naquele domingo, ninguém vomitou.

Um a um retornavam aos seus respectivos lugares. Os instrumentos começavam a marcar o compasso e eles tornavam a cantar.
“NÃO CREIA NOS MESTRES QUE TE APARECEM

E NEM COM ELES NO CAMINHO QUEIRA ANDAR

CREIA SOMENTE EM SEU JESUS

QUE É ELE É QUEM TEM PARA TE DAR”

Algumas pessoas começavam a balançar a cabeça em movimentos circulares ao ritmo da música, em transe. Alguns, com olhos fechados, pareciam se enervar com as letras das canções. Outros, com olhos bem abertos e a pupila completamente dilatada, passavam a imagem de um animal selvagem que, acuado, desperta todos os seus sentidos ao máximo e reforça a percepção do universo ao redor.

Os participantes do ritual continuaram cantando durante mais 30 minutos – agora acompanhados de pequenos livretos com as letras dos hinos – até chegar o momento da segunda dose do chá.

Dos nove homens, quatro mulheres e um bebê, ao menos dez pessoas demonstravam experienciar algum tipo de transe. Isso não impedia que conversassem, mas a fala pausada, a pupila dilatada e o tom reflexivo pareciam demonstrar um estado transitório entre o sono e o despertar.

Beto servia, mais uma vez, os irmãos de fé. Enquanto oferecia o copo, ele repetia para cada um, “darei a ti o Daime”.

Voltaram de novo aos seus lugares e repetiram as cantorias durante toda a tarde.

Texto e Reportagem: Jota Fagner
Fotos e Produção: Márcio Ribeiro
Colaboração Geral: Edmar Souza

Publicado originalmente na Revista Arco (Arquitetura e Comunicação) UniSantos – novembro de 2012 e  também no site Curiosidades Jornalísticas www.curiosidadesjornalisticas.com.br

OBS: A palavra daime é um vocativo: Dai-me; dai-me luz; dai-me paz; dai-me conhecimento.

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Sobre o autor

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Sou Jornalista, Técnico em Turismo, Monitor Ambiental, Técnico em Lazer e Recreação e observador de pássaros. Sou membro da Academia Peruibense de Letras e caiçara com orgulho das matas da Juréia. Trabalhei na Rádio Planeta FM, sou fundador do Jornal Bem-Te-Vi e participei de uma reunião de criação do Jornal do Caraguava. Fiz estágio na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Peruíbe e no Jornal Expresso Popular, do Grupo "A Tribuna", de Santos, afiliada Globo. Fui Diretor de Imprensa na Associação dos Estudantes de Peruíbe - AEP. Trabalhei também em outras áreas. Atualmente, escrevo para "O Garoçá / Editoria Livre" e para a "Revista Editoria Livre."


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