Jornalismo Junior da ECA-USP publica “grande reportagem” sobre a cultura caiçara

Título original:  “Além do seu roteiro de viagem para o litoral: o que há por trás de uma história e um povo tradicional silenciado? Cultura caiçara”

A TRAJETÓRIA DE UMA POPULAÇÃO TRADICIONAL LITORÂNEA E SEU QUADRO ATUAL

Por: Samantha Prado

O quanto você sabe sobre a história local e da população tradicional que deu origem ao que hoje é seu destino de férias?

Os lugares onde muitos turistas passam dias relaxando diante de belas paisagens litorâneas já foi – e, em alguns casos, ainda é – lar de uma das mais antigas culturas de nosso país.

A cultura e narrativa caiçara continua sendo, de forma geral, muito silenciada – em especial pelas meras banalizações daqueles que os classificam como “índios”, uma forma de apontá-los como “não civilizados”. Entretanto, seguem resistindo contra a urbanização acelerada, aos excessos do turismo e aos projetos de grande empresários, a fim de preservar sua memória e seu ambiente natural.

MUNDO LITORÂNEO ALÉM DAS PRAIAS TURÍSTICAS
Denominam-se caiçaras os habitantes do litoral das regiões Sudeste e Sul do Brasil, formados a partir da miscigenação entre índios, brancos e negros. Fazendo parte das culturas litorâneas nacionais, os caiçaras representam um forte elo entre o homem e seus recursos naturais, o que os configura como um exemplo de comunidade harmônica com seu ambiente – tendo em sua tradição a pesca artesanal, a agricultura, a caça, o extrativismo vegetal e o artesanato.

O termo caiçara nasce do tupi-guarani, da palavra “caa-içara”. Separadas, cada palavra sugere uma definição: caa significa galhos, paus; içara significa armadilha. A ideia advinda da junção seria algo como “armadilha de galhos”, referindo-se ao “cerco” feitos nas águas para capturar peixes – uma atividade típica das comunidades pescadoras tradicionais que viviam ao longo do litoral carioca, paulista e paranaense.

“O mundo caiçara era uma sociedade que trabalhava em suas roças e pescava para complementar suas necessidades básicas de sobrevivência” define a professora doutora Maria Luiza Marcilio, hoje docente na graduação de história da Universidade de São Paulo. Ela conta que há muito estudo concentrado na grande agricultura, no binômio entre senhores e escravos, e pouca atenção às populações litorâneas. “Pouco estudaram as realidades humanas que viverem em muitos dos seus interstícios litorâneos, dos roceiros, camponeses-lavradores e pescadores, os caiçaras.” Essa cultura foi estudada por ela no livro ‘Caiçara: terra e população’ (Edusp, 2ª edição, 2006), no qual calca suas falas sobre esse povo.

Apesar de ser uma cultura que viveu quase um século em parcial isolamento, hoje trava contatos cada vez maiores com o universo urbano. O surto de desenvolvimento continuado em suas áreas atendeu as duas grandes demandas econômicas regionais: portuária e turística. Muitas novidades oriundas dos novos contatos acabam por afetar tradições e o modo de vida dessa população. Contudo, ainda restam alguma áreas de persistência significativa da herança cultural tradicional caiçara, entre elas a Estação Ecológica Juréia Itatins – localizada no litoral sul paulista.

Barra do Una na E.E. Juréia Itatins – Imagem: Henrico Marrone

A Estação Ecológica Juréia Itatins foi criada em 1986, sendo uma área de preservação com 84 379,33 hectares, abrangendo os municípios de Iguape, Miracatu, Itariri, Pedro de Toledo e Peruíbe – localizados entre a Baixada Santista e o Vale do Ribeira. Região de floresta atlântica remanescente, a disputa por suas terras já geraram diversos conflitos. Durante o governo militar, houveram projetos para instalação de duas usinas nucleares – nunca realizadas – o que preservou a área da especulação imobiliária.

Ao longo da Estação, encontram-se marcas claras da resistência cultural caiçara, seja na preservação de vilas tradicionais dentro da reserva – como a Vila da Barra do Una e Cachoeira do Guilherme – ou nos hábitos dos moradores mais antigos das áreas urbanas dos pequenos municípios. É nesse cenário que encontramos Márcio Ribeiro e Valquiria do Prado, ambos caiçaras e moradores da cidade de Peruíbe. Márcio é monitor ambiental e jornalista – escreve sobre notícias, variedades e histórias de Peruíbe e Região no veículo O Garoçá. Já Valquiria, teve sua vida muito ligada à Vila da Barra do Una – onde seus avós moravam, em uma ilha no rio do Una – e hoje é bióloga, uma decisão que, segundo ela, foi influenciada pela sua criação em meio à natureza.

CULTURA E TRADIÇÃO
O cerne da cultura caiçara é resultado da mescla que lhe deu origem, unindo tradições das populações indígenas, negras e européias. Ainda que esta comunidade tenha sido formada a partir de sociedades culturalmente díspares, é possível defini-la como população que habita pequenas cidades e povoados ao longo do litoral, atestando a importância da ligação entre o caiçara e seu habitat.

Comunidade e organização

A vida nas comunidades caiçaras é marcada por uma relativa homogeneidade social e cultural. “Eram todos tratados como iguais” relata Márcio. “O respeito e a liderança eram conquistados no dia a dia e não por meio do voto ou qualquer outro tipo de imposição.” A economia parcialmente mercantilizada, a produção de subsistência e a relação de igualdade entre os moradores gerou uma inexistência de classes sociais. “Esse mundo foi composto por camponeses livres, com famílias de nenhum escravo; eles próprios cultivavam suas roças, em terras que legalmente e por direito eram suas” conta a professora Maria Luiza.

As funções tinham de ser bem divididas a fim de manter a organização de mão-de-obra familiar. A mulher tem papel tanto de trabalhadora do lar quanto da roça – compartilhando com maridos e filhos a roça, o plantio, a colheita e a mercantilização dos excedentes. Já o homem, dedica-se à pesca, caça, derrubadas e queimadas, além da construção de ranchos e abrigos.

Casa caiçara na Ponta da Praia em Santos, década de 1940 – Imagem: memoriasantista.com.br

Na questão da moradia, a cultura caiçara assemelha-se bastante à caipira. A estrutura da casa configura-se em paredes de pau-a-pique, telhados de sapê, chão de terra batida e móveis escassos.

Rotina e práticas aliadas à alimentação

Muitas práticas agrícolas (coivara), de pesca (puça) e de preparação de alimentos (em especial da farinha e do peixe) apresentam marcante influência indígena.

A pesca é dividida em duas estações principais: o verão (de novembro à abril) é o período das pescas importantes, enquanto no inverno (de maio à agosto), com tempo frio e pouca chuva, pesca-se a tainha (espécie de peixe).

Em algumas áreas, até os dias de hoje toda a comunidade é chamada para participar da puxada de rede na praia – Valquiria lembra que ainda acontece em Cananéia e Ilha Comprida, ambas no litoral sul paulista. “Pesca de caiçara não é de vara, igual no interior” conta ela, “é de rede, tarrafa. Jogam uma tarrafa da canoa e pegam os peixes.”

Caiçaras de São Sebastião, 1999 – Foto de Nicia Guerriero

Ela também lembra da “armadilha de galhos” que dá origem ao nome “caiçara”: “Quando subia o rio do Una, meu avô fazia um cerco, era um cerco de madeira. Eles veem o trajeto que o peixe faz para subir o rio na desova e o fazem, deixam só uma aberturinha. Aí, quando é época da tainha, fica um bocado presa, eles fecham o cerco e pegam a pesca.”

O conhecimento dos movimentos da maré é essencial aos pescadores, indicando lugares e horários mais propícios para o lançar das redes.

A forte interação entre a comunidade e seu ambiente também abrange uso de plantas – para fins alimentícios, medicinais e de construção. “Para fígado e estômago costumamos usar carqueja e boldo para fazer chá”, conta Valquiria. “Para picada de inseto e coceira, a gente compra madeira de barbatimão dos índios e coloca para conservar no álcool. Depois é só passar.” O entendimento caiçara sobre ervas medicinais é bastante vasto e objeto de inúmeras pesquisas. É comum também a utilização de insumos da floresta e do mangue – como tintas e madeiras.

Típico cerco de pesca – Imagem: quilombosdoribeira.org.br

Já o sistema de cultivo possui marcada influência indígena. Comumente chamada de coivara ou roça do toco, esta técnica tem caráter itinerante e consiste na derrubada e queima da mata para plantação, seguido de um período de descanso da terra – o pousio. Ao contrário do que possa parecer, a roça caiçara não se trata de uma agricultura primitiva, mas uma tecnologia aprimorada e desenvolvida frente às condições tropicais – apontada por pesquisas como um sistema de cultivo agrícola auto-sustentável.

A agricultura serve de complemento alimentar aos pescadores e seu principal produto é a farinha de mandioca – consumida em quase todas as refeições. Essa farinha, desde os tempos imemoriais, trata-se de um substituto ao pão europeu e, por esse motivo, é denominada de “pão dos trópicos”. Alguns dos demais produtos são: milho, cana, feijão, guandu e inhame.

O calendário agrícola é marcado pelo “tempo quente” (outubro à abril) e “tempo frio” (maio à setembro). A estação agrícola tem início em fevereiro – com o plantio da mandioca. O feijão é plantado no tempo frio para ser colhido no tempo quente, enquanto o arroz é plantado no tempo quente para ser colhido no tempo frio.

Frequentemente, a colheita é realizada à base de cooperação entre as famílias da comunidade, no chamado mutirão: o dono da roça convida todos seus parentes e amigos para ajudar sua família em um longo dia de trabalho. Com o término do serviço, o “anfitrião” oferece como forma de pagamento a alimentação do dia e um baile de comemoração para todos os envolvidos se divertirem até o dia clarear – o chamado fandango. O baile de fandango não ocorre apenas como contribuição da colheita, mas também da confecção da farinha de mandioca, construção de casas e entre outras atividades que fosse necessária maior mão de obra.

Religião e festividades

Os caiçaras são um povo, originalmente, de religião católica – herança advinda do colonato português. “Do início da colonização do Brasil até o final do Império (1889) e a aprovação da primeira Constituição republicana (1890), Igreja Católica e Estado estiveram unidos. A religião oficial e única do Brasil era a católica” ressalta a professora Maria Luiza.

É comum muitas das festividades estarem ligadas às questões religiosas, relacionando missas, procissões e festas. As rezas e as músicas unem-se em uma grande entoada. Podemos destacar o dia de Santos Antônio, a festa de São João e o dia 27 de julho – dia de Bom Jesus de Iguape, marcado por uma comemoração que enche a pequena cidade do Vale do Ribeira por dez dias.

No coração da Estação da Juréia, entretanto, é possível encontrar um diferente tipo de crença. Márcio a descreve como uma religião praticamente exclusiva que “mesclava elementos do espiritismo, catolicismo e até de religiões asiáticas como aquelas que possuem o hábito de beijar o chão e jejuar.” Esse grupo surge na década de 1920, quando se instalaram no local conhecido como Cachoeira do Guilherme, seguindo Henrique Tavares. “Havia um líder religioso, chamado de ‘Sátiro’, que era o mentor e guia espiritual dos moradores e, mesmo passados anos de sua morte, a sua memória é respeitada até os dias de hoje, inclusive por aqueles que não o conheceram. A prática religiosa dele chegou a ser chamada de ‘Tavaranos’, por conta do sobrenome Tavares.”

Valquiria também recorda o papel dos benzedeiros na religiosidade dessa população: “Religião para caiçara ou é igreja ou é benzedeira. Na entrada da cidade [de Peruíbe] tinha Dona Maria do Copo. Lembro que ela tinha a imagem de Cristo na parede, benzia com um copo de água e fazia garrafada – um remédio caseiro que a gente não sabe do que era, mas resolvia os problemas.”

Barra do Una – Estação Ecológica de Juréia-Itatins

É válido também destacar que há um grande respeito durante o período da quaresma. Entre o fim do carnaval e o dia da páscoa, não há baile ou música – as violas ficam todas encostadas, viradas para a parede – e os habitantes dos vilarejos se abstém das coisas que mais gostam de fazer. Até mesmo algumas atividades de agricultura e pesca são limitadas nesse período.

A vida intimamente ligada ao mar, levou ao desenvolvimento de várias festividades relacionadas às atividades litorânea: a festa do pescador, a corrida das canoas, a festa da tainha, entre outras.

O carnaval é marcado por diversos fandangos que vão até o dia amanhecer. Já na terça-feira de carnaval, o baile é mais curto e ao seu fim, à meia noite, joga-se cinzas no telhado. Essa tradição marca o início da quaresma e é conhecida como noite do toco. Após a quaresma, há o sábado de aleluia, quando a música volta a tocar e acontece o baile de arranca toco – quando os pares da última moda do fandango, da noite de terça-feira de carnaval, dançam juntos novamente.

Fandangueiros com seus instrumentos típicos – Imagem atabuarasa.wordpress.com

A música popular caiçara é muito rica e fonte de estudos por todo país. Os nativos constroem seus próprios instrumentos – rabecas, violas de machete, tambores e instrumentos de percussão – e sua mudança de toque marca as diferentes danças populares durante as grandes confraternizações da comunidade.

Folclores e lendas

“Os elementos do folclore caiçara são, praticamente, os mesmo do folclore nacional.” conta Márcio. “Temos o Boi-tatá, o Saci, o corpo seco, Lobisomem, mula-sem-cabeça, Festa do Divino, Folia de reis, Festa Junina.” Valquiria se lembra de uma antiga história de seu tio, de quando sua família caminhava da Vila da Barra do Una para Peruíbe. “No meio do caminho, em Barro Branco, tinha uma casa e eles dormiam lá. Meu tio contava que eles estavam dormindo, era noite de lua cheia e madrugada, escutaram um barulho esquisito e quando abriram a porta era um lobisomem.” Ela ri enquanto conta. “Aí eles cobriram a cabeça e ficaram rezando credo. Minha avó confirmava essa história.”

A comunidade da Juréia guarda também diversas lendas. Márcio cita algumas, como a do fogo-fátuo – uma fogueira que nunca era alcançada pelos que caminhavam na praia, pois ela parecia andar também – e da Porta de Pedra. “Existe um desenho de uma porta em uma rocha localizada no morro da ‘boa vista’, local de onde é possível ver a península da prainha, as ilhas, o mar e Peruíbe. Antigos moradores do Guaraú relataram que viram a ‘porta’ aberta a noite, na época quando o trajeto Peruíbe-Guaraú era feito a pé”, conta ele, “segundo o que diziam, a porta estava aberta e havia um homem loiro e muito alto olhando a paisagem. Depois de algum tempo, a porta nunca mais foi vista aberta.” Muitas das lendas de Peruíbe são “encaradas” como casos ufológicos, devido à diversas histórias que atraem os entusiastas da ufologia, os quais consideram a cidade como um ponto de atração dessas manifestações.

Em uma das praias de Peruíbe, conhecida como Prainha, há uma antiga e alta construção de blocos de pedra, semelhante a forma de um castelo. Muitas histórias rondam o apelidado “castelinho”, hoje abandonado, mas quase impossível de entrar. “Diziam que o dono do castelinho era um nazista que fugiu da guerra” conta Valquiria. “Falavam que ele andava armado e atirava em quem chegasse perto, mas eu nunca o vi, tinha medo de chegar perto.”

Castelinho de Peruíbe, foto da década de 1990

CONTEXTOS, ESTERIÓTIPOS E CONTEMPORANEIDADE
A história da economia caiçara está diretamente ligada à forma como esta comunidade foi vista por muitos anos. As zonas litorâneas foram abandonadas pelo poder público entre o século XIX e XX – devido ao fato de que a movimentação econômica do país, naquele período, se dava pela expansão cafeeira e povoamento do interior.

Neste cenário de isolamento, a economia das populações litorâneas se formou com características diferentes tanto da indígena primitiva quanto da industrial dos centros urbanos. Seu sistema de produção era organizado para responder, em primeira instância, às necessidades domésticas. Durante períodos de estagnação econômica, os caiçaras mantinham apenas suas atividades tradicionais de subsistência.

Na segunda metade do século XX, o processo de abertura das estradas para o litoral (em especial do Estado de São Paulo) desencadeia uma efervescência turística e a urbanização do espaço litorâneo.

Tarrafa – Imagem: revistanove.com,br

Já os estereótipos e preconceitos contra o povo caiçara foram criados à base da relativização de seu modo de vida e endossados por tendências etnocêntricas.

Tendo sua vida centrada principalmente na subsistência e em ritmo sintonizado com a natureza – realizando suas atividades de acordo com a lua e as marés – os cidadãos caiçaras são tidos pelo senso comum como preguiçosos e negadores do progresso.

Márcio relata nunca ter sentido ou presenciado preconceito como caiçara, mas que já ouviu muito sobre. “Chamar um caiçara de preguiçoso é uma grande ignorância: ou a pessoa não conhece o costume dos caiçaras ou é incapaz de aceitar uma forma de vida diferente da sua.” Para ele, esse tipo de pensamento também leva a questionar o que seria o progresso e os resultados dessa mentalidade competitiva. “A competição leva à guerra e o caiçara não foi criado para competir e sim para viver em paz.”

Ilha do Cardoso, em Cananéia – Imagem: guiadoturismobrasil.com

O etnocentrismo entra em cena nos embates entre pescadores e grupos evangélicos, uma vez que estes não respeitam as tradições do folclore caiçara. Um exemplo disso é a peregrinação da Bandeira do Divino – principal festejo religioso dessa população, de tradição centenária, já não tão aceito por alguns moradores, que classificam o ato como pecaminoso.

Outro desrespeito contra comunidade ocorreu em março deste ano. Deputados instituíram o dia do caiçara (15 de março) e a Semana de Cultura Caiçara nos municípios e estado paulista. Entretanto, as datas para tais homenagens são durante a quaresma – um período em que a cultura tradicional impõe algumas restrições quanto às realizações festivas e costumes relacionados à pesca e alimentação. As comunidades emitiram um manifesto diante da situação, alertando que as datas não continham consentimento da população e, portanto, não os representava.

Ponta da Praia em Santos na primeira metade do século XX – Imagem acervo professor Francisco Carballa
Ponta da Praia em Santos hoje

O modo de vida tradicional do povo caiçara tem sido brutalmente abalado nos últimos 50 anos – de maneira cada vez mais intensa. O contato com outras realidades e o processo acelerado de urbanização, que avançou sobre áreas antes isoladas, apresentou outra maneira de vida a este povo, lhe impôs limitações à rotina anteriormente livre e abriu espaço para armadilhas e cobiça capitalista.

As dificuldades começaram com a construção da BR-101, na década de 1970, pelo governo militar. A partir dela, todo acesso ao litoral foi facilitado, abrindo perspectiva turística a diversas cidades – como Ubatuba (SP) e Paraty (RJ) – mas com ausência de um estudo sobre os impactos que a construção da via causaria na cultura local. A partir de então, há supervalorização das terras do litoral, que passam a ser alvo de especulação imobiliária e de grileiros.

“O caiçara sempre teve relação de respeito e de equilíbrio entre o homem e a natureza. Esse equilíbrio foi destruído com a bárbara invasão de suas terras pelo mundo ganancioso de loteadores e comerciantes para o turismo.” Segundo a professora Maria Luiza, esse mundo viu suas roças e terras despojadas pela ganância de pessoas ou grupos, que com a abertura da estrada litorânea Rio-Santos, descobriram a beleza dessas praias e a possibilidade de forte e rápido enriquecimento com suas vendas. “Com essa invasão, os caiçaras desconhecendo seus direitos, o valor de suas terras e do dinheiro, sucumbiram ante a audácia e a voracidade dos grupos econômicos de elementos da classe média e de intelectuais de vanguarda.”

Santos década de 1900 -imagem: memoriasantostas.com

Boa parte da população tradicional foi ludibriada com promessas financeiras – vendendo seus terrenos por preços abaixo do mercado – ou documentos falsos de novos “donos da terra”, sendo expulsos. Assim, mudaram-se para periferias das cidades litorâneas ou migraram para novos centros urbanos.

Valquíria lembra um episódio que aconteceu com seu avô, referente à ilha que morava no rio da Barra do Una: “Apareceu uma doutora, advogada, mostrando um documento, falando que era dona da ilha, que registrou meu avô e ele ia ser seu empregado”. Na época, a situação foi aceita com normalidade, mas anos depois foi esclarecida. “Depois que a gente cresce e vai estudar, entendemos: a ilha não pode ser dela, a ilha é da marinha. Com o tempo, começaram a aparecer pessoas querendo lotear a Juréia. Mas, quando virou reserva, isso sumiu.”

Além disso, órgãos ambientais passaram a monitorar as atividades em determinadas áreas litorâneas, gerando impacto na realidade caiçara – muitas vezes tratados com fiscalização ostensiva, sem espaço para diálogo. Enquanto indústrias e organizações bem munidas de capital passam por cima de leis ambientais e compram a fiscalização, a população caiçara é tratada como criminosa ao realizar atividades para seu próprio sustento e de mínimo impacto ambiental.

Imagem: Jorge Mesquita

Márcio destaca a herança indígena na cultura caiçara referente à relação com a natureza, havia uma regra de caçar, pescar e colher somente na época certa. “Hoje, com os estudos da biologia e a questão do meio ambiente cada vez mais presente, percebe-se que as datas guardadas pelos caiçaras coincidem com a data de procriação das espécie, essencial para a manutenção e para uma prática sustentável.”

Além da urbanização e do turismo, nos últimos anos as comunidades têm sido abaladas novamente pelo temor de projetos com sérios riscos ao meio ambiente.

Em 2008, o grupo LLX, liderado pelo empresário Eike Batista, pretendia construir o Porto Brasil nas proximidades da rodovia Padre Manoel da Nóbrega – o que afetaria uma reserva indígena do município de Peruíbe. O projeto foi abandonado seis anos depois, por esbarrar em uma série de entraves ambientais.

Já no início de 2017, foi retomada a iniciativa de construção de uma usina termoelétrica em Peruíbe. Apesar de seus idealizadores alegarem que o projeto teria impacto mínimo aos arredores – longe de reservas indígenas e da praia – a usina traria grande risco ao ecossistema local devido à queima de combustível e ao grande gasoduto terrestre marítimo que cortaria a cidade. Essa situação gerou grande mobilização entre os moradores, dando voz ao movimento “Usina Não”. Graças a essa pressão social, no fim do mesmo ano foi votado o projeto de emenda à lei orgânica do município. Esse proíbe o licenciamento e instalação de empreendimentos que produzam chuva ácida em áreas localizadas a até 20 quilômetros de unidades de conservação da Mata Atlântica – enterrando o planejamento da usina.

Panfleto do movimento contra a usina termoelétrica

IDENTIDADE CAIÇARA
A identidade é algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, permanecendo sempre incompleta, constantemente em processo de formação. No mundo moderno, com o fenômeno da globalização, as identidades tornam-se desvinculadas de tempos, lugares, histórias e tradições. Não é diferente com a identidade caiçara.

A convivência diária com turistas e a aceleração da urbanização, acabam por induzir os jovens caiçaras a subjugar seus valores e modos de vida tradicionais – a fim de se integrarem na sociedade contemporânea. À medida em que as culturas tornam-se mais expostas à influências externas, é mais difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas enfraqueçam através da infiltração cultural.

O enfraquecimento dos laços de identidade torna-se uma grande oportunidade aos especuladores imobiliários que rodeiam essas populações. Eles alegam que as autoridades poderiam deixar de reconhecê-los como caiçara caso a identidade “tradicional” seja diluída – tirando essa população da proteção. Nesse sentido, a identidade caiçara – ainda que inserida nos processos de contemporaneidade – apresenta-se como forma de resistência.

Foto aérea do Rio Guaraú, em Peruíbe – Foto de Renato Augusto Martins

Apesar de muito ter se perdido, a cultura caiçara ainda resiste e busca formas de sobrevivência. Mesmo que a conservação do modo de vida seja inviável na atualidade – afinal, cerca de cem anos se passaram – a honra da memória e de algumas tradições vive de forma plena nas famílias que pertenceram a essa comunidades.

A luta caiçara não se trata da retomada de um estilo de vida intacto, mas de conservar sua história e ser reconhecida como a população tradicional que foi – e ainda é – marcante na construção histórica de nosso país. Sua luta é para população caiçara ser vista como cidadã, e para ter suas tradições respeitadas e reconhecidas, é para manter seu ecossistema salvo de mais degradação do homem.

“O universo da cultura popular é formado pela realidade do possível. Real porque move memória, gesto e palavra; possível porque é situado e sitiado no meio de fortes pressões sociais”

Prof. Dr. Luiz Roberto Alves, estudioso do campo da cultura brasileira.

Texto e Autoria: Samantha Prado* ([email protected])

*Samantha Prado foi criada em Peruíbe e é filha de caiçara por parte de mãe. Atualmente estuda o segundo ano de jornalismo na USP/SP

Postagem: Márcio Ribeiro

Publicação Original: http://jornalismojunior.com.br/alem-do-seu-roteiro-de-viagem-para-o-litoral-o-que-ha-por-tras-de-uma-historia-e-um-povo-tradicional-silenciado-cultura-caicara/

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Sobre o autor

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Sou Jornalista, Técnico em Turismo, Monitor Ambiental, Técnico em Lazer e Recreação e observador de pássaros. Sou membro da Academia Peruibense de Letras e caiçara com orgulho das matas da Juréia. Trabalhei na Rádio Planeta FM, sou fundador do Jornal Bem-Te-Vi e participei de uma reunião de criação do Jornal do Caraguava. Fiz estágio na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Peruíbe e no Jornal Expresso Popular, do Grupo "A Tribuna", de Santos, afiliada Globo. Fui Diretor de Imprensa na Associação dos Estudantes de Peruíbe - AEP. Trabalhei também em outras áreas. Atualmente, escrevo para "O Garoçá / Editoria Livre" e para a "Revista Editoria Livre."


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