Interpretação poética, exercícios e religião

Ler com foco na estética do textos pode ser um forte inimigo à compreensão

Um dos exercícios mais comuns nos cursos de escrita é o de transformar poesia em prosa e prosa em poesia. A ideia é pegar um poema qualquer, de preferência aquele que você gosta e acha que entendeu, e reescrevê-lo em prosa, da forma mais clara possível. Parece simples, mas posso garantir que não é. Para mim, a maior dificuldade é fazer o caminho inverso. Tente pegar um trecho em prosa e adaptá-la para o formato poesia.

Talvez você se saia bem, talvez você tenha habilidades poéticas. Confesso que sou um fracasso escrevendo poesia. Mas é exatamente por isso que o exercício é tão bom, ele nos tira da zona de conforto, nos faz tentar entender aquilo que estamos escrevendo, faz com que tenhamos que adaptar a nossa linguagem, o nosso estilo. Faz com que busquemos nossa voz própria.

No entanto, havia um tempo que não praticava esse tipo de exercício. Mas, na semana passada, resolvi comprar uma versão digital da Bíblia para ler no Kobo. Sim, meus amigos! Não me atirem pedras, por favor. Tive uma educação protestante, calvinista. Já havia lido a Bíblia por completo nos meus tempos de igreja. Tornei-me ateu com 19 anos (faz tempo) e depois disso não voltei a lê-la. Não fazia mais sentido perder tempo com uma coisa na qual eu não acreditava mais.

Com a passar do tempo comecei a perceber a importância que aquelas histórias tinham na formação da nossa sociedade atual. Muito dos nossos valores, bem como muito dos nossos preconceitos, vêm de interpretações que a nossa sociedade deu para os textos judaico-cristãos. As atuais discussões sobre homossexualidade – para ficar num único exemplo – enfrentam forte oposição de uma parcela do público religioso. Imaginei que seria bom reler toda a Bíblia, talvez isso me ajude a compreender melhor a nossa sociedade.

A única imposição que fiz para mim mesmo foi a de que não seguiria em frente se não tivesse compreendido determinado trecho. Digo isso porque a Bíblia é um conjunto de livros que foram escritos originalmente de forma poética. Isso faz com que existam camadas de compreensão. O maior problema é que, ao longo das traduções, os textos foram ficando mais parecidos com prosa, nem sempre com a adaptação necessária. O que temos hoje é, quase sempre, um texto hermético, de difícil interpretação.

Não digo com isso que seria mais fácil entender esses livros no formato original. Não tenho compreensão de nenhum dos idiomas em que a Bíblia foi escrita. Tudo que tenho é a tradução do João Ferreira de Almeida. Só posso me valer dela. Quero, portanto, propor um exercício de escrita para todos nós. Logo no início da minha leitura dei de cara com trecho enigmático – ao menos para mim – que exigiu uns dois minutinhos de reflexão para adaptá-la ao formato de prosa, ou pelo menos daquilo que eu entendi. Em Gênesis 5, versículos 1 e 2 diz:

Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez.

Homem e mulher os criou; e os abençoou e chamou o seu nome Adão, no dia em que foram criados. 

O trecho pode ser conferido aqui.

Leia de novo. Leu? Como você escreveria esse trecho em prosa? Preste muita atenção ao trecho: Homem e mulher os criou; e os abençoou e chamou o seu nome Adão, no dia em que foram criados.

E agora?

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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