Descobri que preciso de um carro

Viagem à cidade do interior sempre resulta, ao menos para mim, na obrigação de visitar vários parentes, amigos e conhecidos. O tempo nunca é o suficiente para encontrar todo mundo. Alguém sempre fica chateado. O bicho pega quando o eixo se inverte. Com a desculpa de visitar a minha mãe, que está adoentada, várias pessoas apareceram nos últimos três dias. Muitos estavam, de fato, preocupados com o bem-estar da minha genitora. Outros apareciam só pela curiosidade típica das pessoas interioranas.

Por uma óbvia questão de bons modos tentei ser gentil com todo mundo. Dei atenção e um dedo de prosa mesmo para aqueles que eu nem conhecia. Um deles, seu José, se mostrou um pouco mais tergiversador que a maioria. Não tive tempo de perguntar o sobrenome do meu xará, mas ele me contou que é paraibano. Morou em São Paulo nos anos 1970. Por causa da esposa, se mudou para o interior da Bahia, onde reside há quase três décadas.

Dificuldades pessoais não permitiram que se alfabetizasse, mas ele contou ser assíduo espectador da cobertura política televisiva. Quando soube que eu havia me formado em jornalismo veio fazer reclamações sobre a cobertura midiática nacional. Seu José não se conforma com a perseguição que os jornalistas têm feito ao PT e ao ex-presidente Lula. Pelo jeito que falava parecia acreditar que eu era culpado de algo.

Tentei argumentar que cada veículo de comunicação possui pauta própria. A democracia só existe quando há liberdade de imprensa. É necessário que haja jornalismo de situação e jornalismo de oposição, caso contrário entraremos num regime de um discurso só.

Não adiantou muito. Seu José continuou descendo o pau nos comunicadores. “Vocês são tudo uns vendidos.”, esbravejava.  “O senhor acha que todos os jornalistas são desonestos e incompetentes”, perguntei com um sorriso irônico no canto da boca. “Não, tudo não. Tem o Datena e o Marcelo Rezende que se salvam. O resto é tudo bandido.”

Eu era o judas da vez. Ele culpava os mensageiros pelo conteúdo da mensagem. Para mudar de assunto e amenizar o clima tenso que começava a contaminar o ambiente, ele perguntou de supetão: “Tu vai pro trabalho de carro ou de moto?”

– Vou de metrô. Não tenho carro nem moto.

– E eu achando que tu era um profissional sério.

Lembrei imediatamente de um trecho do livro Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Quando o cavaleiro da triste figura se dá conta de que necessita de um fiel escudeiro, ele resolve convidar seu vizinho, Sancho Pança. A narrativa de Cervantes é de uma ironia impressionante. Ele escreveu: “Nesse meio tempo, dom Quixote mandou chamar um camponês, vizinho seu, homem de bem – se é que se pode dar este título a quem é pobre –, mas de miolo meio mole.”

Gargalhei largamente. Eu era o Sancho Pança. Seu Zé era Dom Quixote. Tal qual os romances de cavalaria, a propaganda partidária havia influenciado profundamente a visão de mundo daquele homem. De nada adiantaria explicar que os gigantes eram apenas moinhos de vento. Era necessário entrar na fantasia.

“Pois é, se nem carro ou moto eu tenho, como é que eu vou entender alguma coisa de jornalismo ou política?”, admiti. “Nem tem, nem nunca vai ter”, replicou seu José. “Quando o Lula ganhar a eleição de 2018, tu ainda vai ficar desempregado.”

E depois disso seguiu empurrando sua velha Monark Cargueiro, tal qual o velho cavaleiro conduziria Rocinante.

 

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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