Como o cristianismo influenciou os modernos movimentos políticos

Teleologia e escatologia nas concepções políticas ocidentais, direita e esquerda são dois lados da mesma moeda

Já faz algum tempo que excluí o meu perfil no Facebook. Frequentar aquele ambiente virtual não estava me fazendo bem. Resolvi manter apenas a conta no Twitter, acreditando que ali eu estaria distante das disputas partidárias que tomaram conta das redes sociais. Eu realmente não sei de onde tirei essa ideia. Já fui xingado, ameaçado, ridicularizado. Só não me passaram a mão na bunda porque ainda não existe um botão para isso.

Todo e qualquer assunto pode dar início a uma troca de mensagens desaforadas, com direito a insultos e provocações. A lógica é a seguinte: se eu gosto de A, preciso detestar B. E esse maniqueísmo vai um pouco mais longe. Como ninguém se identifica com a crueldade, todos são representantes da mais pura bondade, dos mais nobres valores. Sendo assim, quem pensa diferente de mim é a própria encarnação do mal, e ele, o mal, precisa ser eliminado, não importando os meios utilizados. Como diria o Renato Russo, “estou do lado do bem. E você, de que lado está?”

Essa forma de pensar é diretamente influenciada pelo maniqueísmo ocidental. Existe o bem e existe o mal. Eu sou do bem, logo, o outro é do mal. Esse é um claro sintoma da crença apocalíptica que vigora desde a Idade Média. Após a Revolução Francesa essa escatologia cristã foi se transformando em sua versão laica. A expectativa de alcançar o paraíso celeste se transformou no desejo de construir a sociedade perfeita aqui e agora.

Durante o fim da Idade Média, com o nascimento dos movimentos revolucionários modernos, as antigas crenças apocalípticas foram reencarnadas em versões seculares. O verniz de estrutura científica em nada mudava a expectativa escatológica. Como descrito pelo John Gray, “a crença iluminista radical de que é possível uma súbita ruptura histórica, após a qual as mazelas da sociedade humana serão para sempre abolidas, é um subproduto do cristianismo”.

Em resumo, os modernos movimentos revolucionários dos últimos duzentos ou trezentos anos são apenas a continuação secular das crenças cristãs. A grande diferença é que o cristianismo se assume como credo religioso.

Mas não se engane, o mesmo pode ser dito dos humanistas liberais. A mudança gradual e cumulativa como solução dos problemas da humanidade é apenas uma crença que atende às nossas necessidades de significado.

A Revolução Francesa foi uma tentativa de fazer do mundo um lugar melhor. Muitas cabeças rolaram, literalmente, mas a França continua com problemas muito semelhantes a qualquer outro país. Aquilo lá não se transformou num paraíso terrestre. Desde então, muitos outros movimentos tentaram o mesmo. Os bolcheviques na Rússia, os nazistas na Alemanha, os fascistas na Itália e Espanha, e tantos outros que também não chegaram perto de cumprir a tão sonhada aniquilação de todo o mal e sofrimento. A argumentação norte-americana de que eles estão tentando exportar o modelo democrático de seu país para as nações do Oriente Médio beira o ridículo.

Tudo se resume à escatologia e à teleologia, conceitos muito fortes no cristianismo e que foram reapropriados pelas chamadas religiões políticas. O termo “escatologia” é referente às coisas últimas, àquilo que encontraremos ao final de um percurso. Do grego, eschatos significa o último, enquanto a palavra teleo, de teleológico, significa o final. Escatológico seria, portanto, a lógica das coisas últimas, enquanto teleológico seria a lógica das coisas finais.

Vários gurus surgiram, antes e depois da Revolução Francesa, anunciando um fim do mundo imediato.

Hong Xiuquam liderou, em 1853, um movimento denominado Exército Celestial de Taiping. Xiuquam fundou uma sociedade utópica em Nanjing. Ele acreditava ser o irmão mais novo de Jesus Cristo. Sua comunidade durou 11 anos, mas foi destruída num confronto em que morreram vinte milhões de pessoas. Observe que estamos falando do século XIX. Se esse é um número assombroso para os dias de hoje, imagine para a época.

Ainda durante a Reforma Protestante, Thomas Muntzer, um dos pastores que se contrapôs às ideias de Lutero, deu início a um processo que ficou conhecido como Revolta dos Camponeses. Muntzer foi morto aos 35 anos de idade, quando sua revolta foi sufocada. No total, cerca de cem mil pessoas morreram nesse conflito.

A visão pós-milenarista de que o comportamento humano poderia apressar a chegada de um mundo perfeito só surge com os puritanos, depois dessa mesma Reforma Protestante. Muntzer era um desses adeptos do pós-milenarismo. Aqui, no entanto, se faz necessário esclarecer também esse termo. Entre as mais díspares manifestações do cristianismo, existem duas ramificações que se confundem, mas que defendem teleologias sensivelmente diferentes. A primeira é chamada de milenarismo e propõe que Cristo voltará para dar início a um período de transformações que durará mil anos; a segunda é chamada de milenialismo e defende a ideia de que Jesus só voltará depois que um reino sagrado tiver sido implantado. No entanto, durante a Reforma Protestante, os Puritanos abraçaram o argumento pós-milenarista, enquanto outras vertentes pregavam o pré-mileniarismo, ou seja, continuaram a crer que o milênio de transformações só poderia ser iniciado a partir da intervenção divina. Qualquer pessoa que tenha conhecimentos básicos sobre a história da Inglaterra sabe da importância que os Puritanos tiveram na formação de seu pensamento. O Pós-mileniarismo é a escola escatológica que defende que Jesus Cristo virá pela segunda vez, ao término do Milênio. A questão é definir quando começa a contagem desse milênio.

Quando a Revolução Inglesa teve início, já no século XVI, todos os seus principais partícipes eram profundos conhecedores das profecias apocalípticas. A influência bíblica na formação desses indivíduos não é algo que deva ser ignorado. Todos eles eram adeptos das teses de que o fim do mundo estava muito próximo. Um bom exemplo disso é o posicionamento dos Homens da Quinta Monarquia. Esse foi, reconhecidamente, o primeiro grupo político organizado a assumir uma postura milenarista.

Em vez de admitir que a imperfeição humana pode servir como o principal empecilho para que o mundo se torne um lugar melhor, os adeptos de ideologias – sejam de esquerda ou de direita – preferem crer num complô orquestrado pela oposição. É a velha simbologia do mal encarnado, tão natural ao cristianismo, mais uma vez exercendo sua influência sobre as narrativas políticas. Tais complôs existem, nós sabemos, mas sua causa é a já citada imperfeição humana e não a ideologia professada por seus conspiradores. Basta notar que os erros são abundantes em todos os espectros ideológicos. Nós, no entanto, temos a tendência de apontar as falhas da ideologia oposta enquanto tentamos justificar os erros da nossa. Esse fenômeno foi profundamente analisado no livro Millennium and Utopia, de Ernest Lee Tuveson, publicado em 1964.

A direita conservadora foi se tornando menos laica à medida que se tornava mais utópica. O neoconservadorismo é a esquerda militante com o sinal inverso. Com características extremamente milenaristas, temos o cúmulo da utopia quando Bush resolve “exportar o modelo de democracia americana” para o resto do mundo.

Parte do povo americano realmente acreditou naquilo. O então presidente Bush anunciou que sua meta era acabar com o mal. Como se ele e os seus valores fossem a personificação do bem. Que ele tenha dito tal coisa eu entendo. Ele é um político se utilizando de recursos retóricos; que parte da população tenha realmente acreditado ser possível acabar com o mal de forma definitiva só demonstra o quanto o pós-milenarismo está presente no inconsciente coletivo.

Aqui no Brasil a situação não é muito diferente. Compramos o argumento do governo ou da oposição. Assumimos o discurso como nosso e classificamos como inimigo os compatriotas que pensam diferente.

Eu tenho tentado dialogar. Nem sempre é possível, mas tampouco resolve partir para a agressão. Longe de mim querer parecer anarquista, mas se hay gobierno, soy contra. ¡Se no hay también soy!

 

José Fagner Alves Santos

 

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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