Apenas o que me compete

Diante de alguns questionamentos e afirmações que faço pode surgir a dúvida quanto ao meu posicionamento frente às religiões. Tive uma educação religiosa, já disse isso diversas vezes. Mas também disse que, em determinado momento, tornei-me descrente. Não é algo que se escolhe. Num instante você acredita e no segundo seguinte percebe que não acredita mais.

No entanto, não sou ateu militante. Reconheço os benefícios que a religião institucionalizada trouxe para a sociedade. Também entendo todos os vícios que pegaram carona nesse processo. Gosto de acreditar que persigo o equilíbrio ideológico. E, na verdade, faço grande esforço para isso. Sou o tipo de ateu que lê a Bíblia. Além das grandes metáforas que ali encontramos, é possível ter um vislumbre da evolução do imaginário coletivo daquela que convencionamos chamar de sociedade judaico/cristã ocidental. Foi exatamente por isso que fiz a leitura em ordem cronológica, comecei pelo Genesis e segui até o Apocalipse, não uma nem duas vezes, mas três. É dessa forma que se analisa as mudanças de estilo, as transformações de conceitos, as diferenças terminológicas. A Bíblia me interessa pelo seu valor literário, não tenho paciência nem qualificação para interpretações teológicas.

Cada intérprete crê piamente que sua leitura é a mais correta e, tão logo convença um pequeno grupo de pessoas disso, ficará tentado a fundar mais uma congregação. Discutir o sexo dos anjos não é tarefa para mim. Estou ocupado com problemas mais físicos, “é a verdade do universo e a prestação que vai vencer”, só para citar Raul. Mas a verdade do universo não é algo que me preocupe muito. Existem coisas que estão completamente fora do meu controle, o conhecimento dessas questões – ou a falta deles – não fará qualquer diferença na minha existência. Prefiro concentrar energia em questões mais práticas.

Se o planeta Terra estiver correndo o risco de cair num imenso buraco negro, não há nada que eu possa fazer. Por outro lado, tenho conseguido pagar o aluguel e as prestações todos os meses, não sem uma significativa dose de esforço, é bom que se diga.

Isso me lembra o trecho de uma discussão entre Elena Greco (Lenu) e Rafaella Cerullo (Lila) no primeiro livro da tetralogia napolitana. Em determinado momento de A amiga genial, de Elena Ferrante, quando Lenu tenta contar a Lila que está fazendo um curso de teologia, essa última se mostra irritada com o fato de a amiga estar perdendo tempo com algo de impossível compreensão – visto a infinidade de interpretações –, fora do nosso controle e que não teria nenhuma utilidade prática imediata.

“Você ainda perde tempo com essas coisas, Lenu? Nós estamos voando sobre uma bola de fogo. A parte que resfriou flutua sobre a lava. Sobre essa parte construímos prédios, pontes e estradas. De vez em quando a lava sai do Vesúvio ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há as guerras. Há uma miséria ao redor que nos torna ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o quê? Um curso de teologia em que se esforça para entender o que é o Espírito Santo? Deixa pra lá, foi o Diabo que inventou o mundo, não o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”

O posicionamento de Lila, como se vê, é um tanto radical. Mas, resumindo muito grosseiramente, o que ela está dizendo é: deixe a teologia para os teólogos. Cuidemos daquilo que é de nossa competência.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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