Ainda tenho esperança na continuidade

Acreditava que o estresse do confinamento não me atingiria. Nessa última semana, no entanto, já estava demonstrando irritabilidade com toda e qualquer coisa. Praguejava pelo fato de não poder cortar o cabelo. Com todos os salões e barbearias da minha região fechados, eu já apresentava uma juba desgrenhada. Mas, verdade seja dita, mesmo que estivessem abertos eu não correria o risco.

Restava apenas a possibilidade de me barbear. Na frente do espelho, com o barbeador em punho, tive a incrível ideia de resolver o problema da cabeleira indomável. Passei a máquina ligada pelo centro da cabeça, assim não haveria possibilidade de desistir por arrependimento. O estrago estava feito. O aparelho descarregou antes de chegar à metade. O problema é que já eram oito da noite. Coloquei para carregar e retirei mais algumas mechas. A máquina descarregou mais uma vez. Resolvi deixar para o dia seguinte.

Fui tomar banho e deitar. Dormi com a cabeça pelada pela metade, com tufos e madeixas muito grandes em diferentes regiões do crânio. Acordei cedo e retirei a máquina do carregador. Antes de usá-la, imaginei que seria melhor baixar as melenas com a tesoura. A única que encontrei na casa foi uma tesoura de cortar papel, daquelas pequenas e quase cegas. Teve que servir. Mastigou e repuxou um pouco. Deixei o cabelo bem baixinho e passei o barbeador. Minha cabeça estava completamente nua. Aquele no espelho não era eu, mas uma versão mais jovem do meu pai biológico. Aquela constatação me deixou reflexivo. Aquele homem de meia idade, refletido no espelho, exibindo uma enorme cabeça nua, uma papada de gordo embaixo do queixo e olheiras profundas, era a somatória de meu código genético com as minhas vivências, mas era completamente diferente da imagem que eu fazia de mim mesmo.

A percepção de que minha vida estava seguindo o curso natural e de que eu estava envelhecendo gerou certo terror. Não é que essa consciência me faltasse, mas naquele momento ela se tornou mais forte, premente. Não é o medo da morte em si. Não posso temer algo que me é inevitável. Mas é perceber que não realizei nada digno de nota. Não escrevi o grande romance que planejara aos 16 anos, não tive filhos, não compus uma canção inesquecível, não realizei uma pintura que pudesse emocionar alguém. Sempre fui uma promessa, aos quarenta anos posso dizer que o tempo da promessa já passou e não houve realização.

Talvez seja a hora de começar a viver tudo aquilo que não vivi. Realizar o que eu acho importante e que esteja dentro das minhas possibilidades, mesmo que essas realizações não tenham valor para mais ninguém.

Estou consciente de que serei criticado, ridicularizado e vilipendiado, mas é melhor enfrentar o envelhecimento sabendo que fiz tudo o que me era possível, assumindo minha herança genética e compreendendo a finitude de bom grado.

Para os religiosos, existe a crença num recomeço. Para pessoas como eu, existe a esperança na continuidade.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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