Resenha: A Amiga Genial, de Elena Ferrante

Os grandes romances de formação têm o poder de tocar de diferentes formas seus variados leitores. Suas interpretações podem ser tão múltiplas quanto o número daqueles que se arriscam a compreendê-los. Divertem, informam, instruem, mas, acima de tudo, incomodam. Ninguém com sensibilidade termina a leitura de uma grande obra sendo a mesma pessoa de antes. A capacidade de nos fazer refletir e conceitualizar coisas que antes eram apenas intuídas é o traço mais característico desse tipo de arte.

Assim é com A Amiga Genial, de Elena Ferrante[1]. Esse livro é o primeiro de uma série de quatro volumes, conhecidos como a “Série Napolitana” ou “Tetralogia Napolitana”. A narrativa acompanha a história de duas amigas, ainda crianças, que eram vizinhas num bairro pobre de Nápoles na época do pós-guerra – começando na década de 1950 – e segue até a velhice das duas. Nesse primeiro livro, A Amiga Genial, Elena Greco – a narradora – e Raffaella Cerullo disputam, inconscientemente, o posto de melhor aluna da classe. Elena, mais conhecida como Lenu, é inteligente e organizada; Raffaella, apelidada de Lina ou Lila, é indisciplinada e muito mais inteligente, do tipo que precisa fazer muito menos esforço para compreender os assuntos, e por isso mesmo se entedia fácil.

A amizade entre as duas é muito turbulenta, cheia de altos e baixos. Lenu admira profundamente Lila. Esta última alterna entre momentos de consideração e desprezo pela primeira. A tensão é constante, a competição entre elas dita o ritmo da história. Tudo indica um futuro de grandes realizações para as duas garotas com inteligência acima da média. No entanto, a realidade do bairro pobre, das famílias miseráveis, do machismo reinante e das agressões constantes, destrói todas as projeções que estavam sendo construídas.

Lila é filha de um sapateiro muito rude e pobre, não tem como continuar os estudos para além da quinta série; Lenu é filha de um funcionário público que, com muito esforço, consegue continuar custeando os estudos da filha. A inveja de Lila, que já havia se manifestado anteriormente quando esta jogou a boneca da amiga no porão, reaparece numa engenhosa manipulação. Lila convence a amiga a dar uma volta fora do bairro, para além do túnel, sabendo que Lenu terá que enfrentar os pais quando voltar. A armação não sai exatamente como Lila havia planejado.

Cada nova ocorrência é descrita com um realismo cruel. Ferrante faz com que o leitor alterne os sentimentos que tem sobre as duas, como se fossem pessoas reais, amigas de infância, personagens da nossa vizinhança. Todos os personagens são extremamente complexos. Em vários momentos temos a impressão de que Ferrante está contando suas próprias memórias.

Temos o livro de uma escritora que conta a história de amizade de duas meninas. A óptica feminina dá uma dimensão muito mais intensa e dinâmica para a narrativa. O machismo é visível mesmo entre os homens da esquerda progressista. Essa temática também está presente em toda a história, não de forma militante e artificial, mas integrada de modo orgânico e muito realista.

Como todo livro narrado em primeira pessoa, não há como saber as verdadeiras intenções dos outros personagens. Conhecemos apenas a interpretação que Lenu – a narradora – faz de cada ato dos seus amigos. Suas inseguranças, no entanto, são expostas. Também seus erros e seus atos impulsivos. Não existe o menor esforço da narradora para se mostrar como alguém superior. Seus momentos de inveja, despeito, baixa autoestima e vileza são narrados com total naturalidade, como se houvesse a intenção de passar a limpo toda uma vida.

A amiga genial do título possui valor dúbio. Quem fizer a leitura com atenção irá perceber isso numa frase da própria Lila, já perto do final do livro. O fim do primeiro volume acontece de forma abrupta, num ponto importante da narrativa. Isso causa certa ansiedade para ler a sequência.

A HBO adaptou o primeiro livro para uma série de TV com o mesmo nome. A adaptação está muito fiel, mas não sensibiliza da mesma forma, talvez por faltar aquela sensação de intimidade própria da literatura. Os principais acontecimentos estão lá, da mesma forma que foram descritos no livro, mas falta a sensação de confissão no pé do ouvido deixada pela obra escrita.


A Amiga Genial, obra italiana escrita por Elena Ferrante, foi lançada no Brasil em junho de 2015 pela editora Biblioteca Azul. Com 336 páginas, o romance pode ser comprado por r$ 28,60 no site da Amazon.

Leitura mais que recomendada.

 

José Fagner Alves Santos

 

 

 

[1] Elena Ferrante é um pseudônimo. Ninguém realmente sabe quem é a autora (ou autor) do livro. Há muita especulação e até um caso de investigação jornalística que foi interpretado como invasão de privacidade.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


One Reply to “Resenha: A Amiga Genial, de Elena Ferrante”

  1. Sandro

    Ótimo texto, fala conteúdo dos livros de uma maneira clara e simples, dado motivação para leitura.
    Valeu.

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